Velhos costumes não morrem jamais

06 de Agosto 2024 - 17h13
Créditos: Paulo Caldas Neto

Evoluir não é apenas deixar os velhos costumes, /

Mas adaptá-los em circunstâncias diferentes.

Arthur Stellet

 

 

            O autor da epígrafe acima foi muito feliz em seu comentário sobre o fato de certas tradições não se perderem com o tempo. O dia 22 de junho, antevéspera de festejos juninos, revelou-me uma amostra disso.

            Ainda experimento os desafios e as alegrias da paternidade, tendo os finais de semana totalmente preenchidos com ações voltadas ao lúdico. Sinto o bem-estar cada vez que vejo o meu rebento crescer, desenvolver-se, aprender, apesar de um grave trauma que sofreu ainda no parto. Os detalhes, não vou expor aqui.

            Como todo mês de junho, as chuvas não param; especialmente em Natal, uma cidade litorânea. Já estou acostumado, desde a infância, a assistir às comemorações debaixo de volumosas torrentes de água, que, para os que dançam quadrilha, parece algo comum e divertido. Sempre que se aproximam os dias 22, 23 e 24, a chuva aumenta, e as ruas ficam alagadas. Sendo 22 um dia de sábado, acabou que eu, a minha esposa e o pequeno de apenas dez meses ficamos proibidos de sair de casa. Ele já havia pegado, dali há poucos dias, uma virose (a primeira de outras que ainda virão), e o episódio nos foi muito desgastante e doloroso, porque tivemos que renunciar ainda mais às madrugadas de sono para cuidar da saúde dele. Quem é pai ou mãe sabe do que estou falando.

            Adaptado às nossas saídas, o pequeno começou a incomodar-se com a clausura, o que de certa forma também nos afetou. Tinha o limitado espaço do apartamento para mover-se, dado que agora engatinha e manifesta a vontade de explorar tudo o que está a sua volta. Todos os cantos do imóvel, neste momento, não escapam ao seu olhar e ao seu tato. O que preocupa é sempre o hábito de levar tudo que toca à boca, pois, segundo os especialistas que o tratam, ainda se encontra na famosa fase oral. Freud foi o primeiro psicanalista a definir bem esse período do desenvolvimento infantil e todos os seus marcos.

            Não me considero a melhor pessoa para criar exercícios lúdicos para bebês e crianças. Confesso que nunca levei muito jeito. Porém, a responsabilidade paterna acabou me obrigando a improvisar. Ainda assim, creio que sou insuficiente enquanto animador, mesmo diante dos protestos de minha mulher: “Que é isso, Paulo! Você sabe brincar sim, mas à sua maneira!”. Bom, se ela está falando… Fui em frente na tarefa. Coloquei Felipe, nome do nosso filho, no tapete colorido da sala de estar e espalhei vários brinquedos para que fossem usados durante a interação. Ele tem apresentado dificuldades em focar nas brincadeiras infantis, de modo que preciso, muitas vezes, esforçar-me a fim de que consiga prestar a devida atenção e olhar-nos olho no olho. Em outras palavras, o que Felipe necessita é do entendimento sobre como deve brincar.

            A chuva lá fora não dava trégua, e as horas se passavam. A noite alta avançava. E aos poucos, os planos de irmos ao Game Story escoavam pelas ladeiras e pelos esgotos da rua onde residimos. O vento forte e os pingos d’água lavavam as janelas da enorme vidraça que protege a varanda muito próxima à sala de estar e ao tapete. Santa vidraça! Do contrário, eu e Felipe já estaríamos molhados. O meu condomínio fica localizado numa área de intensas correntes de ar. Quando cai um dilúvio, este vem acompanhado de rajadas de vento capazes de derrubar móveis, bater portas, desmanchar enfeites das paredes. O trabalho que temos depois para organizar tudo isso, só você, caro leitor, pode imaginar.

            Sentei-me diante de Felipe, mostrando-lhe uma pequena torre com peças de borracha em forma de círculos para que ele compreendesse como usá-la. Eu ia montando a torre e, em seguida, retirando, uma a uma, as peças. Repeti o gesto várias vezes. O meu interlocutor foi observando (mesmo em alguns instantes desviando o olhar) e imitando a minha postura, com a diferença de que optava por derrubar a haste do objeto com o intuito de as peças caírem, e ele pudesse desfrutar de umas breves mordidas no material. Agravante: os dentes estavam brotando na gengiva, o que suscitava coceira e irritabilidade. Eu mudava a estratégia para prender-lhe o foco. Apontei uns livros num compartimento térreo, embutido no móvel da sala, o qual sustentava a televisão e uns poucos adornos que tornavam o ambiente agradável. Esses livros infantis eram equipados com áudio. Acionando-se dispositivos neles próprios, os personagens da história falavam como se fossem gente, e tal característica despertava interesse em Felipe.

            Entre o manuseio dos brinquedos e a tentativa de contar-lhe histórias, havia os passeios que eu inventava pelos 98 metros quadrados do apartamento. Eu o colocava no triciclo infantil (usado normalmente nas nossas andanças de final de semana), e percorríamos certas distâncias dentro dos limites impostos pelo imóvel. Para um bebê, um simples movimento, por menor que seja, equivale a um percurso de milhas por hora. O passeio terminava na biblioteca que servia de Home Office. Felipe acabou descobrindo os meus livros, não bastassem os que já tinha. A diversão foi a de retirar os exemplares da estante um a um, tocá-los, folhear as páginas sob meu controle, e, na sequência, espalhá-los pelo chão. Minha esposa, às vezes, tinha a ideia de maquiar-se, e os olhos de Felipe se fixavam nela, como se tentassem reconhecer um rosto com o qual não estavam habituados a ver. É a fase em que a criança passa a realizar distinções.

            Todo o empenho foi no sentido de não lhe ofertar telas. A recomendação dos pediatras, psicólogos e terapeutas ocupacionais é a de que, antes dos 2 anos, a criança não seja exposta a elas, com o objetivo de não lhe prejudicar a concentração, reduzindo-lhe, assim, os níveis de ansiedade. Infelizmente, nem todos os pais, nesses tempos contemporâneos, possuem esse entendimento, e o resultado vamos notar mais tarde no desempenho estudantil e social dos filhos.

            Após tudo o que pudemos inventar ao longo de todo o dia, uma vez que o dilúvio seguiria por toda a noite até a madrugada, veio a hora da refeição. Montei a cadeira, destinada a este fim. Nosso filho resiste a provar alimentos pastosos, líquidos. Tem sensibilidade a eles e demonstra nojo. Somos obrigados a adotar estratégias para que, lentamente, os aceite. A mesma coisa não acontece quando oferecemos comida rígida, sólida. A orientação dos especialistas é continuar com a oferta até que o bebê se amolde, dado que se houver qualquer desistência nossa, a probabilidade de uma recusa maior poderá se estender até a idade juvenil a ponto de o futuro adolescente e adulto ter seletividade alimentar, o que é muito ruim. Toda a empreitada finalizou com a forte exaustão de Felipe e a nossa por volta das 21 horas e 30 minutos. O nosso rebento, por fim, entregou-se ao sono dos justos.

            Só me dei conta, ao cair da noite, da lição deixada por esse dia chuvoso e atípico: havíamos eu e minha esposa resgatado velhos costumes do passado. Numa época em que não tínhamos celulares, computadores, nem jogos digitais, éramos forçados a criar atividades recreativas para ocuparmos o dia já agitado por natureza. Os brinquedos e as demais brincadeiras inventadas nos satisfaziam por inteiro. Ao ar livre, eram ainda mais prazerosas. Todas elas ficaram obsoletas com o advento da tecnologia. Muitas foram esquecidas e, hoje, só existem na memória dos mais velhos. E que bom que ainda estão vivas em todos nós! O que precisamos é tão somente muito zelo ao guardá-las a sete chaves. Cultivá-las é reaver velhos costumes que nos faziam conviver integralmente uns com os outros, conhecendo-nos mais. Preservávamos a socialização, a capacidade de dialogar. É claro que esses elementos requerem maleabilidade, comunicação adequada, vontade de escutar o outro. Só assim o engenho é posto em prática. A verdade é que perdemos o hábito de criar, inovar. Porque tudo isso envolve compromisso conosco e, sobretudo, com aqueles que amamos. Penso que o resgate em questão até pode ser avaliado como um meio de nós, pais e educadores em geral, revermos as nossas formas de educar, possibilitando-nos reescrever, assim, o roteiro dos caminhos a serem trilhados pelos que darão continuidade a nossa história.

 

Por Paulo Caldas Neto