Populismo fiscal e ressaca econômica

24 de Outubro 2021 - 08h45
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A América Latina é useira e vezeira na arte em produzir crises – econômicas, políticas... Crises de toda ordem. Potência na região, o Brasil não foge à regra do lugar, esteja mandando no país a direita ou a esquerda.

Uma das últimas uniu políticos, intelectuais, artistas e anônimos. Todos irmanados contra o projeto voluntarioso, demagógico, oportunista e irracional do atual presidente Jair Messias Bolsonaro, às voltas com mais uma daquelas propostas que negam o que a contabilidade ensina há anos: a de que despesas não podem ultrapassar receitas, sob pena de, ocorrendo tal desatino com frequência, gerar dívidas que engolirão receitas... O núcleo-duro da formação oposicionista ao projeto bolsonarista é formado por aqueles que querem apeá-lo do poder; repete-se, agora, o que se fez contra Dilma, mudando-se apenas a composição ideológica. O enredo demonstra que obediência a princípio, no Brasil, é coisa apenas para estar em discursos, nunca para praticar. Lembro-me de uma máxima antiga: “Em política, quem tem princípio tem fim.”

Nossos dirigentes, quase sempre muito diligentes no trato com a coisa pública quando oposicionistas, são muito pouco responsáveis e quase nunca responsabilizados pelas farras que produzem com o dinheiro do Estado, que, a rigor, do povo, o último a ser consultado sobre o que fazem com o seu rico dinheirinho.

O Brasil parece não aprender a discutir os temas sérios com a devida seriedade. Não há, entre os nossos dirigentes, parece, sabedoria suficiente para compreender os anseios da sociedade. Por isso, abusa-se dos atos voluntaristas que visam tão-somente a eleição seguinte.

A ciência moderna nasceu no Ocidente. Mas a sabedoria não tem hemisfério. O Japão e a Coréia e, agora, a China têm sobejamente provado isso.

Arruinada por quase três décadas de dirigismo econômico, a China faz, desde o final da década de 1970, quando se libertou dos dogmas maoístas, uma reforma econômica encangada na outra, sem que o móvel delas sejam as crises econômicas que enfraquecem ciclicamente as economias ocidentais. E a experiência chinesa torna o sucesso de uma reforma ensinamento para a seguinte.

Os chineses fizeram, nos últimos vinte anos, duas importantes reformas tributárias, reforçando a máxima de Miguel de Cervantes, o célebre espanhol criador de D. Quixote de La Mancha, para quem “o melhor molho do mundo é a fome”.

Enquanto os chineses debruçam-se sobre o essencial, o Brasil fica no acessório.

Desde Sarney (para ficarmos somente na Nova República), a reforma tributária está na agenda do dia. Fernando Henrique Cardoso e Lula afirmaram ser ela uma prioridade – juntamente com a reforma política. Ambas ficaram pelo meio do caminho, pois o “príncipe e o sapo”, para usar imagem construída por importante jornalista, não puderam – ou não quiseram – queimar o capital eleitoral e político numa matéria por demais desgastante.

Reforma tributária – na China ou em Marte – passa por cima de interesses. A última feita na China, uma ditadura, consumiu três anos de discussões. No Brasil evita-se o primário – a discussão do tema. E assim, passa o tempo e as distorções do sistema tributário só se agravam. E a complexidade do sistema entrava o crescimento econômico, impedindo a população economicamente ativa de ocupar um espaço no sistema produtivo.

Sem crescimento econômico compatível com as necessidades de nossa população, criamos um exército de famélicos que só conseguem sobreviver à base dos auxílios sociais do governo. Dessa forma, corremos o risco de transformar programas assistenciais em políticas permanentes. Seria a escravização dos pobres, eternamente dependentes das esmolas governamentais.

Alguns dos desajustes da economia brasileira decorrem da dificuldade de nossa elite dirigente, à esquerda e à direita, de aceitar uma mudança de porte no contrato social entre o Estado e os indivíduos, algo que substituía a visão paternalista do governo por uma atitude mais próxima daquela que vigora nos países que mais crescem no mundo.

Ser contra o paternalismo do Estado brasileiro não significa ser avesso à solidariedade – mesmo porque o paternalismo é o abastardamento da eficiente solidariedade. É de suma importância que sejamos sensíveis com os problemas alheios e atentos à miséria que campeia no nosso país. Precisamos, porém, atentarmos para alguns aspectos importantes. Não é possível, do ponto de vista econômico, praticar solidariedade sem custo. Logo, há limites orçamentários que devem ser obedecidos. Qualquer programa político de solidariedade tem de funcionar, então cabe a quem o implementa buscar eficiência. Isso pode parecer, ainda que seja, apenas tecnocracia; assim deve ocorrer, dado que os recursos disponibilizados para programas e políticas sociais são escassos, mas as demandas são infinitas.

A Constituição de 1988 reflete o período em que foi elaborada e, portanto, a falsa percepção que ao Estado caberia a função-mor de provedor da Nação. Foram várias as mazelas trazidas, entre elas a opção de implementar políticas sociais meramente distributivas, que funcionam através de um sistema puro e simples de transferências de recursos financeiros e que, de certa forma, prendem o beneficiado ao presumido benemérito – sempre o agente público que distribui benesses com o chapéu de todos. É o neocoronelismo, com o coronel mudando-se de cada município do Brasil para a capital federal.

O mais correto e certamente o mais alvissareiro, a médio e longo prazo, seria a readequação do sistema, com maior igualdade de oportunidades, cabendo ao Estado a repactuação do contrato social – que deveria estabelecer o Estado daria a cada indivíduo, essencialmente, educação básica, saúde, segurança e acesso ao sistema de justiça. Daí por diante, caberia a cada um desbravar seu caminho – com atuação pontual do Estado para sanar pontos de estrangulamento. Funciona assim nos países que estão dando certo, mas o Brasil prefere trilhar um caminho próprio, ainda que os resultados se mostrem desastrosos. É a contra-indução de que falava Mário Henrique Simonsen.

Somos um país que detesta o sucesso e enaltece o fracasso. Tom Jobim afirmou que o brasileiro gosta de render glória ao fracasso. Por isso, arrematava o músico genial, o brasileiro não gosta como deveria de Pelé.

Os gastos da previdência subiram, de forma exponencial, entre outros fatores, porque por mais de duas décadas só aumentamos a remuneração de quem nunca contribuiu ou quase nunca contribuiu para o INSS. E só fizemos a reforma quando não havia mais saída (e olhe que teve trabalho de pós-graduação, aprovado em banca, que apontava como desnecessária a reforma).

Os gastos com a distribuição de bolsas cresceram assustadoramente (ainda que sejam ínfimos os gastos do governo federal com elas se comparados a outros) na última década e meia e a consequência disso é que a despesa primária vem aumentando muito como proporção do Produto Interno Bruto (PIB) no mesmo período. Isso não é ilegítimo, mas se sabemos como os gastos do governo têm crescido e não nos dignamos a discutir o tipo de Estado que queremos, não podemos reclamar do aumento da carga tributária, nem de que faltam recursos para investimentos. Afinal, como disse acima, os recursos orçamentários serão consumidos em políticas de solidariedade. E eles irão embora tanto mais rapidamente quanto menos eficientes tais políticas forem. Este é um princípio econômico. E não pode ser revogado por decreto, como quiseram muitos daqueles que sentaram na cadeira presidencial.

Governos gastadores e perdulários resolvem seus problemas e pioram,, a média e longo prazo, a vida da Nação. Não existe, como disse Delfim Netto, almoço grátis. A conta sempre chega, e é paga pelos convivas ou por quem convida. Se ninguém quer pagar, o dono do estabelecimento assume o prejuízo. É assim que as coisas funcionam no mundo real da economia, onde não há espaço para quem é apenas voluntarioso.