O STF serve para criar (in)segurança jurídica

24 de Março 2021 - 10h27
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Começo dizendo que não sou da área jurídica, mas, educado como fui, sei ler.

Feita a ressalva, segue o jogo.

Qual é o papel Supremo Tribunal Federal (STF)?

Formado por 11 ministros indicados pelo presidente da república e confirmados pelo senado, o STF constitui-se na mais alta instância da justiça brasileira e tem como função primordial garantir o cumprimento da Constituição. É uma espécie de cão-de-guarda de nossa carta magna. Ou deveria ser.

Os ministros do STF têm mandato vitalício e permanecem no cargo até, no máximo, setenta e cinco anos de idade.

A nossa suprema corte de justiça, responsável pela guarda da Constituição e, também, última instância a se pronunciar em torno de conflitos sobre o nosso contrato social, para utilizar termo caro aos pensadores liberais, tem sido responsável por avacalhar a nossa Constituição, transformada em 11 constituições, ao sabor do ministro de ocasião.

Isso vem de pelo menos uma década, mas tem se acentuado nos últimos cinco ou seis anos, com ministros despindo-se das togas e vestindo ternos cortados por alfaiates dos partidos políticos.

Para burlar a lei magna, suas excelências esgrimem argumentos jurídicos que atropelam o texto frio do texto. Põem a hermenêutica jurídica à frente da língua portuguesa, apresentando-nos uma Constituição que só existe na cabeça deles.

Quando a escrita deu o ar da graça no mundo grego, os conflitos e suas superações foram redefinidos face ao novo contexto. As ideias e, portanto, a tradição literária até então se manifestavam de forma oral, não-letrada. E assim permaneceram por um longo período, mesmo depois da invenção do alfabeto, conforme registra Eric Havelock, em A Revolução da Escrita na Grécia e suas consequências culturais.

Habitantes de cidades, os gregos foram percebendo a força da palavra, instrumento maior da vida política. E foi a escrita, segundo Jean-Pierre Vernant (As origens do pensamento grego), que forneceu maior divulgação de conhecimentos antes vedados a muitos, pois ela satisfaz a função da publicidade. Em suma, seguindo as pegadas de Vernant, um sistema de fala seguiu outro percurso, parindo uma nova linguagem social que obedece a regras mais flexíveis que a composição oral, mas que inviabiliza enormemente a burla, ou seja, não permite dizer o que não está dito, pois o que está escrito, ensina Vernant, “não é mais o privilégio exclusivo de quem possui o dom da palavra; pertence igualmente a todos os membros da comunidade. Escrever um texto é depositar um texto (...) no centro da comunidade, isto é, colocá-lo abertamente à disposição do conjunto do grupo. Enquanto escrito, o logos é levado à praça pública (...)”, publicizado.

É a partir daí que o Direito nasce, quando a decisão da comunidade é fixada em praça pública (publicidade), passando, aos poucos, a lei a ser registrada e a cair no domínio comum, exposta ao olhar público, à vista dos cidadãos, mesmo daqueles que não conseguem ler e, assim, segue Vernant, mesmo com “ tudo o que se os opõe no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no plano político, como unidades permutáveis no interior de um sistema cuja lei é o equilíbrio, cuja norma é a igualdade”.

Voltando ao Brasil.

Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre pretendiam novo mandato para presidirem, respectivamente, câmara e senado. O artigo 57, parágrafo 4º, da Constituição diz ser “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Este caso foi posto sobre a mesa do STF e, o mais estranho, o placar foi o seguinte: sobre a eleição de Rodrigo Maia o placar foi de 7 votos contra (Nunes Marques, Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux) e 4 a favor (Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski); sobre a eleição de Davi Alcolumbre foram 6 votos contra (Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux) e 5 favoráveis (Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski) (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/12/06/stf-veta-possibilidade-de-nova-eleicao-de-maia-e-alcolumbre-para-presidir-camara-e-senado.ghtml).

Em português está escrito que é impossível alguém presidir a Câmara ou o Senado mais de uma vez seguida, conforme reza o artigo 57, parágrafo 4º: “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.”

Não é necessário suas excelências dizerem à sociedade o que está escrito no artigo 57, parágrafo 4º. Mas alguém achou que era e nós descobrimos que o STF, guardião da Constituição, vestiu a bata de professor das primeiras letras e tentou nos dizer que o que está escrito não é exatamente o que está escrito. Cheguei a duvidar do que lia e pedi à minha filha, de nove anos, que lesse e me dissesse o que estava escrito no artigo e parágrafo citados, e ela me disse exatamente o que eu li.

Como disse acima, o STF, pelo comportamento instável e volúvel de parte de seus membros, é o maior responsável pela instabilidade jurídica e por tabela também política (nisto é sócio do atual presidente da república) do país. As extravagâncias de alguns ministros da suprema corte brasileira põem por terra a previsibilidade de suas decisões judiciais, preceito essencial para garantir aos cidadãos a segurança de saber que os ministros vão proceder sempre da mesma forma na aplicação das leis – ou pelo menos próximo a isso (http://revistathemis.tjce.jus.br/index.php/THEMIS/article/view/724).

Também chama a atenção a desfaçatez.

Ontem, o tribunal declarou a suspeição de Sérgio Moro. Votaram favoráveis à demanda de Gilmar Mendes, o próprio, Ricardo Lewandowski e Carmém Lúcia, que mudou de posição, duas semanas depois. Isso mesmo, duas semanas depois de proferir voto contra a suspeição de Moro, Carmém Lúcia mudou de posição (https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/03/23/carmen-lucia-muda-voto-e-resultado-no-stf-fica-em-3-a-2-pela-suspeicao-de-moro.ghtml). O artigo 39 da Lei nº 1.079/1950 define que:

“São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal:

1 – alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal;

2 – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;

3 – exercer atividade político-partidária;

4 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;

5 – proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decôro de suas funções.” (grifos meus)

Ninguém também lembrou de perguntar por qual motivo Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, respectivamente desafeto de Moro e amigo do peito de Lula, não se declararam suspeitos. Por que nenhum membro do tribunal ou da OAB ou do ministério público se pronunciou sobre o caso, apontando a suspeição do amigo de Aécio e de Temer e novel amigo de Lula e do amigo de Lula.

Quando do impeachment de Dilma, em 2016, lá estava Lewandowski presidindo o senado (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/08/25/ricardo-lewandowski-preside-processo-de-impeachment-no-senado); Dias Toffoli  nunca se furtou a julgar casos em que o partido ao qual foi vinculado e do qual parece nunca ter se desligado inteiramente (https://jurisway.jusbrasil.com.br/noticias/100018113/pedro-taques-ve-suspeicao-ou-impedimento-de-toffoli-no-julgamento-do-mensalao) e o STF silencia quanto suspeição do ex-advogado do Partido dos Trabalhadores (PT).

Os desarranjos esseteefianos impedem que a justiça ocorra de verdade. O nosso tribunal maior está na fase do pré-Direito.