Fernando Henrique Cardoso e o Instituto da Ex-Presidência

26 de Maio 2021 - 10h33
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Há coisas dignas de admiração e de opróbio nos Estados Unidos, como há em todos os países do mundo e, confesso, estou mais para admirador do que crítico da potência da América do Norte e do mundo. E coisa digna de admiração é a reverência e a compostura dos ex-Presidentes dos Estados Unidos, que, terminados os mandatos, recolhem-se à vida privada, sem intromissão alguma na vida pública do país. É assim desde George Washington e, ao que tudo indica, nada aponta para mudança de vulto neste quesito.

Aqui nos trópicos, ex-Presidentes da República saem candidatos a senador (Sarney e Dilma), governador (Itamar) e buscam novos mandatos presidenciais (Lula), aviltando o posto de primeiro magistrado da nação que um dia ocuparam. Mesmo figuras de proa de nossa história, como Vargas e JK, rebaixaram a Presidência, quando correram atrás de mandatos no Senado Federal – Vargas pelo Rio Grande do Sul e JK por Goiás.

Os generais-presidentes do ciclo de 1964, é verdade, recolheram-se à vida privada, mas os cinco (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) chegaram ao cargo na vigência de um regime autoritário (Costa e Silva nem chegou a se recolher à vida privada, fulminado por um derrame). Da redemocratização até hoje, somente um ex-Presidente ensaiou fortemente criar o Instituto da Ex-Presidência: Fernando Henrique Cardoso, que chegou ao Palácio do Planalto num lance que combinou um quase caos econômico e social, sorte e competência.

Suplente de Senador, em 1978, FHC assumiu o mandato em 1983, quando o titular, Franco Montoro, sentou na cadeira de govenador de São Paulo. Reeleito em 1986, na onda do Plano Cruzado, afastou-se do Senado em outubro 1992 para assumir o cargo de Ministro das Relações Exteriores, cargo a que sempre aspirou. Em maio de 1993, com o país sendo tragado pela inflação e sem que o Ministro da Fazenda Eliseu Resende tivesse condições políticas de permanecer no cargo, o presidente Itamar Franco convidou, num ato de quase súplica, o seu chanceler para comandar a economia do país. Naquele momento, FHC estava preocupado com as questões da política internacional e pensava como, no ano seguinte, iria organizar sua campanha visando ocupar uma cadeira na Câmara Federal, pois sabia que suas chances de renovar o mandato senatorial eram praticamente nulas, como ele mesmo registra nos Diários da Presidência e em O improvável Presidente do Brasil.

Alçado ao posto de Ministro da Fazenda, FHC montou a equipe responsável por construir plano econômico para resolver o problema inflacionário que tornava caótica a vida no país. À frente da equipe, Fernando Henrique emprestou seu nome e prestígio político às medidas indicadas por jovens economistas, quase todos egressos da PUC do Rio de Janeiro.

Entre 1993 e 1994, as bases do Plano Real foram montadas e implementadas levando o aspirante a deputado federal por São Paulo desincompatibilizar-se, em março, do cargo de Ministro para candidatar-se à Presidente da República.

A vitória, no primeiro turno, sobre Lula foi consagradora e o mandato do intelectual uspiano seguiu sem sobressaltos, tirando as caneladas do Partidos dos Trabalhadores, useiro e vezeiro na arte de fazer oposição sem trégua ao país, até que a aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição para cargos executivos foi aprovada, com denúncias de compra de votos, a crise de 1998 engolfasse a economia brasileira e FHC, que vencera por duas vezes, no primeiro turno, a Lula, caísse ladeira abaixo, sem conseguir fazer o sucessor, José Serra, na eleição presidencial de 2002.

Fiel a seu figurino educado, cordato e republicano, o Presidente fez uma transição digna de elogios, passando a faixa presidencial para o seu maior adversário e duas vezes contendor, Lula, que pouco tempo depois, junto com os seus áulicos, dizia ter recebido herança maldita.

Pois bem, foi esse mesmo Fernando Henrique que semana passada hipotecou previamente apoio a Lula num provável segundo turno contra Jair Bolsonaro.

Naturalmente, como cidadão livre que é, o ex-Presidente Fernando Henrique deve escolher em quem votar no peito eleitoral do próximo ano. Nada deve existir que o impeça de sufragar o nome Lula, provável adversário de Jair Bolsonaro, rejeitado por parcela cada vez maior de eleitores insatisfeitos com a forma como conduz o país. Penso, porém, que a manifestação precoce de FHC prejudica o partido ao qual é ligado desde o final da década de 1980 e macula a sua atuação como fomentador do Instituto da Ex-Presidência. Sem contar que deveria olhar com atenção um sem-número de argumentos e principalmente fatos que deveriam impedi-lo de votar em Lula e mesmo no PT que se apresenta como guardião do bem.

Só para refrescar a memória, durante os oito anos de mandato de Fernando Henrique, todos os projetos enviados ao Congresso Nacional foram rejeitados pela bancada do PT. Antes mesmo de FHC chegar à Presidência, o PT sabotou e/ou atrapalhou quase todas as tentativas de pôr o país nos trilhos, como descrevo abaixo:

1) O PT, que se apresenta como baluarte da luta pela redemocratização, absteve-se de votar, em 1985, no colégio eleitoral, em Tancredo Neves, adversário de Paulo Maluf, candidato do regime autoritário que dirigia o país há mais de duas décadas;

2) O PT não aprovou a promulgação, em outubro de 1988, da Constituição Federal, que ele ajudou, na Assembleia Constituinte, a elaborar (https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/apos-25-anos-da-constituicao-lula-justifica-voto-contrario-do-pt,ded5e2e05b471410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html).

3) O PT (Jair Bolsonaro também) se pôs contrário ao Real, importante iniciativa do governo Itamar Franco, com Fernando Henrique à frente do Ministério da Fazenda, plano econômico que estabilizou nossa moeda e pôs fim à escalada inflacionária (https://veja.abril.com.br/economia/bolsonaro-e-pt-votaram-contra-o-plano-real-ouca-audios-da-epoca/).

4) O PT foi contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no Congresso Nacional durante a gestão tucana e que pôs fim aos desmandos de muitos gestores públicos, trazendo transparência aos gastos do Executivo (https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u68770.shtml).

5) Já em janeiro de 1999, pouco mais de dois meses após a reeleição de FHC, o então deputado federal Tarso Genro lançou a campanha Fora FHC. E daí em diante e sempre por unanimidade, o PT abraçou a bandeira que exigia o impeachment do Presidente Fernando Henrique (https://oglobo.globo.com/brasil/ha-16-anos-setores-do-pt-pediam-impeachment-governo-acusava-golpe-15979631).

6) Foi Lula e o PT que chamaram o legado de FHC de herança maldita, como se Itamar e o sociólogo que virou Presidente não tivessem entregado ao petista um país infinitamente melhor (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3004200402.htm).

7) Foi a Presidente Dilma Rousseff, sucessora de Lula, quem deu azo e incentivo à elaboração do dossiê que acusava Fernando Henrique e Ruth Cardoso, sua esposa, de gastos sem freio com vinhos caros (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0404200802.htm).

Fernando Henrique poderia dizer que não votará, em hipótese alguma em Bolsonaro, por motivos sobejamente conhecidos (Bolsonaro é adversário histórico de pautas defendidas por FHC; chegou inclusive a defender o seu fuzilamento) (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3012199902.htm), sem hipotecar apoio antecipado a Lula num provável segundo turno, em 2022. Justificou sua manifestação dizendo que Lula tem postura republicana, esquecendo-se, porém, que a gestão de Lula foi responsável pelo Mensalão, compra de votos dos parlamentares no Congresso Nacional.