Paralelos

22 de julho 2019 - 20h59
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FHC está para Lula, como Castelo Branco está para Médici.

Marx, ao se referir ao golpe de Estado de Luís Napoleão, afirmou que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Não sei se sua assertiva é verdadeira. É fato, no entanto, que existem semelhanças entre processos históricos distantes no tempo.

As duas grandes fases brasileiras de crescimento econômico acentuado nos últimos cinquenta anos têm semelhanças significativas. O milagre de Médici e o milagre de Lula têm dois santos a serem reconhecidos.  

Durante quase todo o segundo mandato de Lula cansei de ouvir comentários acerca do carisma inabalável do torneiro mecânico que, pelo seu esforço, chegou à Presidência da República. Lembrei-me quase sempre de duas personagens significativas da história recente do Brasil – Ernesto Garrastazu Médici e Getúlio Dorneles Vargas.

Lula chegou a ser apontado como um novo Vargas. Mas não é necessariamente com Vargas que Lula se parece. O figurino econômico de seu governo, talvez o maior responsável pela sua popularidade recorde, está mais próximo do governo Médici. Há paralelos incontestáveis entre ambos.

                Médici e Lula assumiram a Presidência da República em sequência quase imediata a um doloroso mas necessário período de estabilização econômica. Médici logo após o governo de Costa e Silva e um curto interregno no qual os três ministros militares escantearam o vice-presidente Pedro Aleixo e empalmaram o poder. Costa e Silva iniciou a fase do milagre brasileiro. Médici o finalizou. Lula chegou à Brasília para assumir um país que, após anos de inflação descontrolada, estava nos trilhos, embora não gozasse de plena saúde econômica e financeira. Ambos, Médici e Lula, são devedores de seus antecessores. Lula, de FHC; Médici (e Costa e Silva), de Castelo Branco.

Sem o saneamento econômico-financeiro empreendido durante o governo Castelo Branco, o milagre econômico que atingiu o auge durante o quinquênio de Médici na Presidência da República não seria possível. O mesmo deve-se dizer do governo Lula: sem os ajustes dos anos FHC, o crescimento econômico da era Lula não teria sustentação.

O atual contexto histórico, com as rusgas nas quais estão envolvidas as principais forças políticas do país, impede que se jogue luz na discussão. A emoção e os sofismas lançam um véu sobre o que foi resultado das ações do governo Lula e o que o seu governo deve ao de FHC.

Não há governo que seja continuidade absoluta de outro. Mas há governos que mantêm inalteradas as bases herdadas das gestões que o antecederam. E ainda há governos que são devedores de governos anteriores. Alguns reconhecem, outros maldizem a herança.

Não há indício de que Médici negasse a boa herança legada por Castelo Branco, mesmo este sendo, no seio do Exército, de um grupo adversário. Médici, da linha dura; Castelo, dos moderados.

Mesmo que quisesse, Médici não poderia abdicar da herança de Castelo. Não abdicando, não poderia deixar de reconhecê-la e mesmo bendizê-la. E, ressalte-se, Castelo foi dos poucos presidentes brasileiros que não deixou de fazer o que devia, em matéria econômica, em nome da popularidade.  

Consolidada a tomada do poder e centralizada a autoridade no Executivo, Castelo Branco e seu grupo voltaram-se paulatinamente para os males econômicos que assolavam o país. Não há como desconsiderar, por qualquer ótica, que a economia brasileira estava em frangalhos no início de 1964. O Brasil estava à beira da insolvência, não havia crédito disponível no mercado internacional, a inflação galopante chegara a uma taxa anual de quase 100%, o empresariado, nacional e internacional, com receio do quadro caótico, adiava suas decisões econômicas, exceto aquelas mais imediatas.

Para reverter o quadro, Castelo Branco convocou dois dos mais experimentados economistas do país, Octavio Bulhões e Roberto Campos, e deu-lhes carta branca para pôr o país nos trilhos. Reconhecidos pelos empresários e banqueiros e com vasta experiência no setor público, a dupla Campos-Bulhões elaborou um diagnóstico da economia brasileira num trabalho de mais de 200 páginas intitulado Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG).

O PAEG apontou que seria a inflação a principal responsável pelo desvario econômico-financeiro brasileiro. Sua causa, dizia o trabalho da dupla, era o excesso de demanda. Esta, por sua vez, foi associada aos frequentes déficits públicos e ao excesso de crédito para o setor privado. Para atender a demanda, apontavam Campos e Bulhões, a base monetária era ampliada, o que estimulava um processo violento de inflação e suas consequentes distorções – oscilações bruscas nas taxas de salários reais, desordem no mercado de crédito, entre outros. Tal desorganização afastava completamente as possibilidades de investimento a longo prazo, tão necessário para o crescimento econômico do Brasil.    

Acusados de se venderem à banca internacional e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), a dupla Campos-Bulhões receitou um remédio, apesar de amargo, muito mais leve do que o preconizado pelo FMI. E uma vez receitado, o remédio de Campos e Bulhões não foi dado de uma só vez, pois poderia matar o paciente; foi pingado em doses homeopáticas, num enfoque gradualista radicalmente contrário às doses cavalares e ao tratamento de choque defendido pelo FMI.

A opção de Campos e Bulhões era monetarista, tão do desagrado das correntes econômicas que gravitavam em torno do governo Goulart, demonstrou-se eficaz. O gradualismo liberal-monetarista da dupla brasileira amorteceu alguns efeitos deletérios e preparou o terreno para o crescimento econômico do governo Costa e Silva e, principalmente, do de Médici.

Lula perdeu duas vezes para FHC, ambas no primeiro turno, e ainda assim é apontado como carismático inabalável. Depois venceu duas eleições presidenciais, em 2002 e 2006, e durante quase todo o seu segundo mandato muitos comentaram que o seu carisma sólido e inarredável era o grande responsável pelos seus altíssimos índices de popularidade, como se o carisma não dependesse, nas circunstâncias em que governou, das ações racionais do governante.  

As gestões de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso foram as responsáveis por domar o dragão da inflação, que corroeu as bases da economia brasileira por duas décadas. O Plano Real, montado durante o período em que Itamar Franco ocupava o Palácio do Planalto, para onde foi alçado após a queda de Collor, foi sustentado por FHC, quando este, depois de convidado pelo Presidente para assumir a pasta da Fazenda, renunciou ao Ministério das Relações Exteriores e emprestou a sua credibilidade aos projetos de estabilização econômica da nova gestão.

Foi durante o tempo que FHC esteve à frente do Ministério da Fazenda que o Plano Real foi gestado. Foi graças ao Real que FHC capacitou-se para concorrer à Presidência da República, bateu Lula, que esteve durante boa parte do tempo à frente nas pesquisas pré-eleição, no primeiro turno e foi guindado ao posto de primeiro magistrado do nação. Quatro anos depois, repetiu o feito, vencendo o mesmo Lula, também no primeiro turno.

Quem tem menos de vinte anos não sabe o que foi o quadro inflacionário brasileiro entre a década de 1970 e primeira metade dos anos 1990. Os mais afoitos superficializam as medidas econômicas empreendidas pelo governo Fernando Henrique. Muitos não reconhecem que grande parte das conquistas econômicas e sociais nasceram durante os anos que ele ocupou o Palácio do Planalto. Até mesmo o seu partido, o PSDB, chegou a renegar a herança por ele deixada.