O Conselho (a)Ético da Câmara de Deputados

07 de Junho 2024 - 16h33
Créditos: Montagem Internet

Começo dizendo que demorarei a posar no tema deste artigo, pois para nele chegar é necessário abordar panoramicamente as ideias de um dos mais profícuos e instigantes pensadores do mundo ocidental, o inglês John Locke, um dos pais, junto com Thomas Hobbes, do contratualismo, e um dos pais do pensamento liberal.

Hobbes propôs que, antes de se organizar socialmente, os homens viviam em estado de natureza, em guerra uns com os outros, cuja consequência é a imposição de uma autoridade governamental. Seguindo a senda aberta por Hobbes, Locke aceitou a ideia de estado de natureza, no entanto de forma diferente, como é possível perceber nesta passagem: “O fim capital e principal em vista do qual os homens se associam nas repúblicas, e se submetem aos governos é a conservação de sua propriedade” e registrou, ainda que, no estado de natureza o homem não dispunha de condições para atingir os objetivos, pois não havia “uma lei estável, fixada, conhecida, que um consentimento geral aceite e reconheça como critério do bem e do mal e como medida comum para estatuir sobre todos os diferendos”, tampouco “um juiz conhecido de todos o imparcial, que seja competente para estatuir sobre todos os diferendos segundo a lei estabelecida”, muito menos uma “potência para a impor quando ela é justa e colocá-la em execução da forma devida”.

Os dois tratados sobre o governo civil são um passeio praticamente completo sobre a origem e o exercício do poder. O segundo é, porém, com base na resposta a dois questionamentos, um marco acerca da origem do governo representativo: 1) Quem faz o que no governo representativo e 2) Quem tem o direito de se fazer representar? Ao respondê-las, Locke ensina o que deve ser feito para libertar a Inglaterra da tirania dos reis católicos, assegurando a sobrevivência do Parlamento, instituição responsável pelo exercício do poder dentro da sociedade: “Quem quer que detenha o poder legislativo, ou supremo, de uma sociedade política deve governar em virtude de leis estabelecidas e permanentes, promulgadas e conhecidas do povo, e não em decorrência de decretos improvisados; deve governar por intermédio de juízes íntegros e imparciais, que resolvam os diferendos em conformidade com as leis; não deve utilizar a força da comunidade, no interior, senão para assegurar a aplicação daquelas leis e, no exterior, somente para prevenir ou reparar ataques do estrangeiro e manter a comunidade ao abrigo das incursões e da invasão. Tudo isto não deve ter em vista nenhum outro fim além da paz, a segurança e o bem público do povo”.

O que assistimos na última quarta-feira (06), no Conselho de Ética da Câmara de Deputados, foi a negação do Parlamento como o espaço da civilidade política, onde “não deve ter em vista nenhum outro fim além da paz, a segurança e o bem público do povo”, afinal o Parlamento é casa da guerra civil em período de paz.

Quando o Conselho de Ética absolveu o deputado federal André Janones por 12 votos a 5 da acusação de rachadinha, aprovando o relatório de um dos paladinos a moralidade, o deputado Guilherme Boulos, candidato do PSOL a prefeito de São Paulo (https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2024/06/livre-de-cassacao-por-rachadinha-janones-cobra-r-1-mil-em-curso-para-eleger-candidatos-nas-redes.ghtml), demonstrou que suas decisões são eticamente aleatórias, pois faltas morais grosseiras são desconsideradas, falhas menores podem gerar perda de mandato, os mesmos erros podem ser julgados diferentemente e nunca há argumentos e princípios morais na mesa, só luta da baixa política. Igualmente, as decisões do “ínclito” Conselho independem de julgamento moral; ali só há cálculos de conveniência, negociações e negociatas políticas, que poderão ser modificados se o nível de escândalo deixar a opinião pública furibunda. Ética que é bom, saiu para passear.

Quando os deputados Janones e Nikolas Ferreira se propuseram a trocar sopapos depois de encerrada a votação e percorreram os corredores da casa legislativa se acusando e se agredindo, feriram o decoro. Ele, o decoro, acompanhou a ética no passeio.

E o nosso Parlamento, casa da guerra civil em período de paz, não serve ao propósito, diria Locke.

 

Por Sérgio Trindade