Lula candidato e Lula presidente

31 de Outubro 2022 - 08h11
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Durante a campanha, o ex-presidente (e agora presidente eleito) Luiz Inácio Lula da Silva disse, num evento religioso em São Paulo (17/10) que, mesmo vencedor, precisaria lidar com o apoio de uma parte do eleitorado do atual presidente Jair Bolsonaro: “Nós vamos ter um problema. Vamos ganhar as eleições, vamos derrotar o Bolsonaro, mas o bolsonarismo está criado. Por isso, nós temos que conscientizar a sociedade para que ela não crie no bolsonarismo uma política definitiva para o Brasil.” Na sequência, emendou: “Esse país sempre foi reconhecido como um país alegre, que gostava de festa, de futebol, de dançar, de carnaval.”

Há na fala de Lula desconhecimento da história do Brasil e uma percepção meio acertada e meio equivocada. Fiquemos, primeiro, com o desconhecimento histórico.

Essa coisa de que o brasileiro é alegre e festeiro esconde um traço da nossa psicologia, a saber, o da violência que pontua, em vários momentos, a nossa história. Não vou me estender muito e nem vou muito lá atrás.

O Brasil jogava a copa do mundo, em 1938, com Leônidas da Silva e Domingos da Guia desfilando categoria, classe e malandragem em campos europeus, e o carnaval, oficializado como festa nacional corria solto, enquanto os esbirros do Estado Novo prendiam e torturavam nas masmorras da ditadura instaurada por Getúlio Vargas, no final de 1937. Por oito anos. O mesmo Vargas que iniciou o processo de modernização da economia brasileira e que, na primeira metade da década de 1950, sofreu a maior e mais pesada oposição do aparelho midiático nacional, sem que o povo deixasse de ouvir e de vibrar durante os jogos do selecionado brasileiro em gramados suíços e sem que as marchinhas e sambas ganhassem as ondas do rádio e as ruas das principais cidades do país. Em meados da década de 1960 e 1970, jovens vibravam nos festivais de música e pulavam nas avenidas ao som das escolas de samba, reuniam-se em festinhas para ouvir bossa nova, requebravam ouvindo músicas da jovem guarda e quase todo o país assistia, extasiado, as feras do Saldanha nas eliminatórias da copa do mundo e, logo depois, a mais fantástica seleção de futebol já montada em todos os tempos, enquanto os porões do regime autoritário nascido por um golpe de força estavam abarrotados com a heterogênea oposição que estava proibida de se manifestar contra a tirania.

Lula não é adivinho, mas sabia que o Brasil sairia – como de fato saiu – muito fraturado da peleja eleitoral.  A campanha quase me convenceu e o dia D, o da eleição, confirmou que Bolsonaro e Lula tinham, sozinhos, cada um, em torno de 1/3 do eleitorado. O terço restante era formado por gente que não votaria nos dois ou não votaria num ou noutro. O candidato que conseguisse capturar mais eleitores desse terço venceria. Logo, o vencedor não teria – como Lula não terá – vida fácil a partir de 1º de janeiro, pois haverá contra si grande contingente do terço bolsonarista e, ainda, parcela do eleitorado que nele votou apenas por rejeitar o atual presidente. Uma plêiade de economistas consagrados, empresários do primeiro time, artistas, intelectuais e magistrados, muitos não petistas e que até fizeram oposição ao PT, votaram em Lula não porque estivessem convencidos de que ele era a melhor opção, mas porque não gostariam de ver o mandato de Jair Bolsonaro renovado. Lembremos que Lula chegou a mencionar o seu desejo de revogar o teto de gastos, substituindo posteriormente a proposta alucinada, talvez por sugestão de algum economista calejado, pela criação de uma âncora fiscal, sem dizer exatamente qual.

Existe uma direita, no Brasil, que saiu do casulo. E ela tem atraído parte da direita tradicional, avessa ao PT, aos métodos que partido implantou e as pautas que defende. Bolsonaro foi visualizado pela nova direita (grande parte dela autoritária) e pela direta tradicional como porta-voz das propostas delas. Pegou os instrumentos, saiu abrindo veredas e foi sendo seguido. Muitos dos seguidores e eleitores nem bolsonaristas são, como também não são lulistas muitos dos que seguiram e votaram em Lula. Ou seriam lulistas FHC, André Lara Resende, Armínio Fraga, etc?

O mapa eleitoral deixou claro uma outra fratura, também histórica. Quem conhece minimamente a história do Brasil, de um modo geral, e a do Nordeste, em particular, sabe que o regionalismo nordestino é muito forte, e o Nordeste muitas vezes foi em direção contrária à do Centro-Sul. A consequência tem sido, nos últimos anos, sempre motivada por divergências política-eleitorais, uma onda de ataques dos sulistas aos nordestinos, que têm reagido no mesmo tom. Faço um adendo: os ataques são de parte a parte, com argumentos pueris e grosseiros, quase sempre desligados do mundo real.

A campanha toda foi sofrível. O segundo turno, para quem esperava algo mais alentador, não deveu nada ao primeiro. Os candidatos simplesmente esqueceram que disputavam a primeira magistratura da nação e limitaram-se a dizer platitudes, a fazer promessas inexequíveis e a atacarem um ao outro.

Passada a eleição, espera-se que Lula, agora eleito, diga o que fará, saindo do terreno pantanoso das promessas e das falas bonitinhas de que dará amor ao povo ou de ficar em recordações vagas e imprecisas sobre como chegou ao poder e construiu um Brasil de felicidade, onde pobre comia picanha e andava de avião, inclusive em viagens para o exterior, afinal não dá para comparar o país que Lula recebeu de Fernando Henrique Cardoso do que receberá de Jair Bolsonaro, vinte anos depois. Não custa lembrar, que o tucano entregou ao Lula de 2003 um país com sérios problemas a resolver, mas com contas saneadas e politicamente estável. Meses depois de assumir, o petista passou a dizer que recebera herança maldita, mesmo montado sobre dados macroeconômicos que permitiram a economia brasileira crescer razoavelmente bem entre a primeira e a seunda metade da primeira década deste século. 

Um bom candidato é aquele que submete suas propostas ao escrutínio público. Lula não o fez (Bolsonaro também não), logo foi um mau candidato e, por isso, mantenho o pé atrás sobre suas pretensões como presidente, porquanto qualquer país, ainda mais um socialmente conflagrado como o Brasil, precisa de compromissos claros e assumidos com responsabilidade.

O discurso de Lula, ontem, após a confirmação da vitória, até ensaiou um pouco isso. Olhando para alguns de seus companheiros de caminhada (Guilherme Boulos, José Guimarães, Raimundo Padilha, entre outros) presentes ao evento, prefiro desconfiar das boas intenções. Delas, diz o ditado popular, o inferno está cheio.