Há 100 anos, primeiro avião chegava a Natal

20 de Dezembro 2022 - 23h02
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Nas primeiras décadas do século XX, Natal era uma pequena cidade localizada no extremo leste do nordeste do Brasil. Naquele tempo, ninguém imaginava que a pequena vila entraria para a história da aviação, como ponto de passagem dos grandes raids aéreos ou parada obrigatória dos esquadrões bombardeiros que cruzaram o Atlântico Sul, rumo à África, Europa e Ásia, na segunda guerra mundial.

Há 100 anos, a cidade iniciou sua participação nos anais da aviação, quando, em 21 de dezembro de 1922, amerissava no rio Potengi a primeira aeronave.

Era o avião “Sampaio Corrêa II”, um hidroavião Curtiss fabricado nos Estados Unidos, que tinha como comandante o senhor Walter Hinton, um piloto norte-americano e veterano da primeira guerra mundial. E para tornar a história ainda mais fascinante, o copiloto era um brasileiro, o senhor Euclides Pinto Martins.

Nordestino, cearense, potiguar de coração e negro

Nascido em Camocim, no Ceará, em 15 de abril de 1892, Pinto Martins passou parte de sua vida pelo Rio Grande do Norte, com passagens por Mossoró, Macau e Natal, além de ter viajado muito pelo interior, pois fez parte da frente de trabalho da “Estrada de Ferro Central”, atuando inclusive na construção da ponte férrea do Igapó. Mas antes disso, conta a história, que ele foi aluno Atheneu, onde deu início aos estudos do conhecimento náutico, chegando a oficial da marinha mercante por algum tempo. Insatisfeito com o trabalho e inquieto, com cerca de 18 anos de idade decidiu viajar aos EUA, onde fez bons amigos e apesar do racismo e preconceito daquela terra por seu um homem de pele morena, quase negro, em 1911, conseguiu forma-se engenheiro mecânico.

Retorna a Natal e pouco tempo depois vai morar em Recife, e após ficar viúvo decide retornar novamente a terra do “Tio Sam”. Na segunda vez, tenta empreender no ramo da cabotagem, mas sem sucesso, em 1921, ingressa na escola de aviação conquistando seu brevet de aviador e onde conheceu o senhor Walter Hinton, então instrutor e famoso por ter participado de uma viagem entre os EUA e os Açores.

O raid New York – Rio de Janeiro

Uma amizade se formou entre Pinto Martins e Hinton, o que resultou também em um projeto audacioso e custoso, que para sair do papel precisa do apoio financeiro, conquistado por meio de um investidor, apontado como o banqueiro Andrew Smith Junior. Tratava-se de um raid aéreo entre as cidades de Nova Iorque (EUA) e o Rio de Janeiro (Brasil), passando por países das américas do Norte, Central e Sul. Os raids aéreos eram verdadeiras travessias em aviões com o objetivos variados, ou seja, poderia ser uma viagem de elevado tempo se fosse uma viagem de record de distância percorrida ou em menos tempo se fosse um raid de velocidade.

Para tal façanha, foi decidido a aquisição de uma avião biplano, fabricado pela Curtiss, batizado por Sampaio Corrêa, equipado com dois motores de 400 HP e cerca de 28 metros de envergadura. Vale lembrar que era década de 1920, quando os projetos aeronáuticos mais pareciam barcos voadores, ou seja, máquinas pesadas, lentas e perigosas.

Em 17 de agosto de 1922, eles fazem um voo teste partindo de uma doca na margem do rio Hudson, voando por cerca de uma hora, até pousar em na estação naval de Rockway, em Long Island, NY, de onde partiram com destino final a capital brasileira, o Rio de Janeiro. Nesta ocasião, o piloto Hinton chegou a declarar para a imprensa que a aeronave era segura e possuía um motor confiante. Passariam ainda por Charleston e Flórida.

A ideia era chegar ao Brasil antes do 7 de setembro, pois naquele ano de 1922 era centenário da Independência, contudo três dias depois, em 20 de agosto, eles são surpreendidos por mau tempo na Flórida, obrigando-os a permanecer no local por dois dias. Porém, a espera não durou muito e custou caro, no dia 22 de agosto, o Sampaio Corrêa sofre um grave acidente a caminho das Bahamas, o qual inutilizou o equipamento próximo a Guantanamo, Cuba, obrigando o reboque e o resgate dos tripulantes pelo navio da Marinha dos EUA, cruzador Denver.

Nem tudo estava perdido e como um sinal de boa sorte, ninguém se feriu gravemente com o pouso forçado. E apesar do Curtis não ter chance de conserto, surge outra boa notícia, que a Marinha americana forneceria um segundo avião, mesmo modelo do primeiro e batizado por Sampaio Corrêa II. Para isso, Hinton e Pinto Martins precisam voltar aos EUA, onde encontrariam o avião na Estação Naval de Pensacola, Flórida. O jornal The New York World também ajudou na manutenção e campanha de arrecadação de fundos.

A segunda tentativa partiria de Pensacola, passando por: Guantanamo (500 milhas aéreas), Porto Príncipe, Haiti (210), San Juan, Porto Rico (420), Trinidad (690), Georgetown, Guiana Inglesa (380), Guiana Holandesa (225), Manaus (850), Pará (750), Maranhão (250), Aracati (420), Natal (200), Paraíba (80), Recife (70), Bahia (390) e Rio de Janeiro (734). Totalizando quase 6.200 milhas aéreas ou 10 mil quilômetros.

Em 3 de setembro a viagem é retomada e passam a integrar a tripulação, além do piloto e copiloto, o mecânico da própria Curtiss, John Edwards, o jornalista do “The New York World”, o senhor George Thomas, e o cineasta John Thomas Baltzel, sem muitos detalhes sobre eles. Não há muita informação se eles estavam na primeira tentativa, apesar de existir um telegrama de Hinton publicado no jornal, em que ele cita que esteve preocupado com seus tripulantes ao cair no mar com o Sampaio Corrêa, registrando até o avistamento de tubarões e esgotamento físico no mar.

O mau tempo foi um adversário constante dos aviadores, que aprenderam com o erro e passaram a consultar com frequência os  boletins atmosféricos. Havia muita expectativa no Brasil, com festas programadas em Recife e no Rio de Janeiro, mesmo sem uma data definitiva. Em 2 de dezembro, às 15 horas, o Sampaio Corrêa II chega a Belém do Pará, mas sua entrada no Brasil se deu em 30 de novembro, pela ilha de Maracá, no Amapá. Ou seja, a ideia de ir para Manaus não prosperou.

Em 21 de dezembro de 1922, há exatos 100 anos, por telegrama, a notícia ganha o mundo difundindo o seguinte texto: “Recife (21) Os aviadores Walter Hinton e Pinto Martins, que, a bordo do hydro-avião “Sampaio Corrêa II”, realisam o grande “raid” Nova York-Rio de Janeiro chegaram hoje a Natal, às 12 horas e 50 minutos”. O percurso Aracati a Natal foi percorrido em cinco horas de voo.

Um detalhe que chama atenção é um recorte do jornal A Noite (RJ), em que fala da ansiedade de Catolé do Rocha, na Paraíba, aguardando a passagem do avião por lá. O fato é inusitado, pois a cidade fica no sertão paraibano, a mais de 160 km do litoral e 180 km de Aracati.

Por onde o avião passou, emocionou e reuniu multidões. Em Natal não foi diferente. Grande quantidade de pessoas foram até o cais da Tavares de Lira esperar a amerissagem, colocando os aviadores literalmente nos braços. Bastante conhecido em Natal – sua terra de coração – Pinto Martins teve a atenção disputada pelas autoridades e populares, curiosos com o feito. Antes de tocar as águas do Rio Potengi, o Sampaio Corrêa II fez algumas evoluções sobre a cidade, inaugurando um feito, a passagem baixa sobre a matriz de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque.

Logo que desceram no cais, eles foram recebidos pelo governador Antônio de Souza, pelo padre Manoel Barreto, o poeta Othoniel Menezes, entre outras autoridades do gabinete do Estado. Cumpriram uma extensa agenda com direito a visita ao Palácio do Governo, na praça Sete de Setembro, visita aos jornais locais, missa campal, loja maçônica e Centro Náutico e Sport Club Natalense. Ainda tiveram tempo de visitar a estátua de Augusto Severo, onde prestaram as devidas homenagens. Ficaram hospedados no Palace Hotel e no outro dia, em 22 de dezembro, partiram logo cedo.

Há relatos de que os tripulantes passaram o Natal, 25 de dezembro, em solo nas proximidades de Baía Formosa, a 70km ao sul de Natal. A aventura acabaria apenas em 8 de fevereiro de 1923, quando o avião passa sobre Cabo Frio a caminho da Baía da Guanabara. Ao chegar no Rio, os aviadores foram recebidos com todas as solenidades possíveis, inclusive sendo recebidos no Palácio do Catete, pelo presidente Arthur Bernardes.

Do feito, pouco se fala hoje. Pinto Martins virou nome de aeroporto no Ceará e em Natal dá nome a rua, em Areia Preta.