Um fígado debilitado por um mix de substâncias tomadas para dormir, ficar alerta, ganhar definição muscular e, principalmente, emagrecer pode ser a principal chave para entender o quadro que terminou com a morte da cantora Paulinha Abelha.
Antes de uma análise geral dos medicamentos, conheça em três pontos um resumo do que dizem os exames médicos e o que consta na receita:
- Resultado da biópsia (laudo anatomopatológico) mostra que o fígado da cantora estava fortemente debilitado, com áreas mortas. Além disso, tinha retenção de bile no fígado (colestase). O fígado, entre outras funções, é responsável por eliminar substâncias tóxicas por meio justamente da bile. O laudo não crava, mas diz que as lesões são compatíveis com as provocadas por medicamentos.
- Exame de substâncias tóxicas no corpo (triagem toxicológica): Deu positivo para duas substâncias: 1) anfetaminas (remédios que agem no cérebro aumentando estado de alerta e que têm efeito sobre o apetite) e 2) barbitúricos (sedativos e calmantes). Deu negativo para outras 10 substâncias, incluindo drogas.
- Receita de medicamentos: o receituário assinado por uma médica nutróloga indicava um conjunto com 7 medicamentos ou fórmulas. Ao todo, eram 18 substâncias. Na análise dos especialistas consultados pelo g1, o foco dessa lista era inibir a absorção de carboidratos, gordura, atuar no humor, no sono e apoiar nos treinos físicos para ganhar passa muscular.
A avaliação geral de dois hepatologistas e uma nutricionista após analisarem os laudos e os itens que constam na receita é:
"O principal a apontar é essa "salada de compostos" na receita. Com uma certa frequência eles interagem entre si e podem resultar em danos sérios ao fígado", avalia Mário Kondo, professor adjunto de gastroenterologia da UNIFESP e hepatologista do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo.
Para Vanderli Marchiori, nutricionista e fitoterapeuta com especialização em medicina complementar:
"Sem dúvida alguma, era uma pessoa que tomava remédio para dormir e para acordar. E para se manter magra o tempo inteiro. E, infelizmente, talvez até de acordo com o tempo de uso, o organismo não deu conta", afirma Vanderli.
O hepatologista Raymundo Paraná, professor titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia, avalia:
"A intoxicação por fórmulas (para emagrecer) eu vejo com frequência no SUS e na clínica privada. A frequência é assustadora. Felizmente, a imensa maioria evolui bem com a suspensão. Só poucos tem desfechos gravíssimos", afirma Paraná.
A receita com sete tópicos tinha três dedicados a medicamentos alopáticos (da medicina tradicional, normalmente agem produzindo efeitos contrários aos da doença, por exemplo, antidepressivos ou antibióticos).
Para além dos remédios tradicionais, a lista tinha uma série de suplementos alimentares, extratos de plantas e fitoterápicos (obtidos de plantas medicinais ou de seus derivados, utilizados com finalidade profilática, curativa ou paliativa).
Para que servem as substâncias e os medicamentos receitados?
Os remédios listados tinham como função regular o humor, sono e apetite.
Entre os tradicionais, o primeiro da lista era o bupropiona, um antidepressivo que costuma ser usado em tratamentos para deixar de fumar, mas ela também é eventualmente receitado por atuar contra a compulsão por doces, segundo Vanderli Marchiori.
Outro remédio alopático da lista é o venvance, usado para tratar hiperatividade e déficit de atenção, mas que também pode ser aplicado em tratamento contra transtorno alimentar. É da classe das anfetaminas, substância que apareceu positiva no laudo.
"Pode causar agressão hepática, mas não é habitual se usado isoladamente. Tem muitas interações medicamentosas nefastas sobretudo com antidepressivos. Pode causar arritmia e não deve ser usado em pacientes com insuficiência renal", explica o hepatologista Raymundo Paraná.
Por fim, o Orlistat fecha a lista dos remédios tradicionais voltado especificamente para o emagrecimento: age no intestino. Ela inibe uma enzima produzida no pâncreas, a lipase, que faz a ingestão de gorduras. Isso faz com que cerca de 30% da gordura ingerida na alimentação seja eliminada nas fezes.
"Seu efeito adverso é a perda de continência, eliminando gorduras através do ânus. O indivíduo pode passar por situações vexatórias, por isso o próprio paciente diminui a ingestão de alimentos gordurosos. Em relação ao fígado é muito seguro, mas tem casos de hepatite.
Na outra metade da lista o foco das outras quatro fórmulas e suplementos era:
acalmar, reduzir estresse e ansiedade;
ajudar no combate da insônia e a manter a atenção;
impede a absorção de carboidrato;
ganho de massa muscular.
Como as fórmulas ou extratos não possuem uma padronização de dosagem para uso ou mesmo não foi possível localizar estudos de eficácia científica, o g1 não vai listar os nomes de todas as substâncias que as compõem.
Quais as possíveis complicações das substâncias?
O professor e hepatologista Raymundo Paraná destaca que os itens da lista classificados como suplementos alimentares e afins não apresentam estudos de fase 3 (testes em larga escala com humanos comparando o produto com um placebo) para atestar eficácia e dosagem segura.
Além de fazer ressalvas generalizadas para praticamente toda a lista, o professor ressalta que há relatos de complicações para o uso da valeriana, da paulinea e da garcinia camboja.
"Sobre a garcínia, o que nós temos de fato, baseado em estudo clínico, é um alerta do NIH dos EUA que a garcínia pode causar agressão hepática e algumas vezes essa agressão pode ser grave. É uma droga que deve ser evitada", afirma Paraná.
O professor Mario Kondo também destaca o mesmo composto. "Pelo menos essa garcínia camboja é bem conhecida, mas outros podem estar envolvidos (no desgaste do fígado)", avalia Kondo.
Já a nutricionista Vanderli Marchiori avalia que o receituário era extenso, mas que de modo geral a prescrição "fazia sentido". "Sem conhecer o caso, tirando o bupropriona e o venvance, faz sentido para algumas pessoas", avalia Vanderli, que não viu na lista nenhuma quantidade prescrita acima do que é comum no meio.
Com informações do G1