Brasil velho de guerra

23 de Junho 2020 - 10h37
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Desde os anos 1970, quando eu, ainda criança, levado pelo meu pai a comícios e comecei a me interessar por política, que ouço e leio sobre uma refundação da vida pública no Brasil.

Foi assim com a campanha das Diretas, com a eleição indireta do candidato oposicionista ao regime de 1964 Tancredo Neves, em 1985, com a eleição direta Fernando Collor, em 1989, e com o seu impeachment, em 1992, com a ascensão de Lula, em 2002, o primeiro operário a sentar na cadeira presidencial, e, em 2018, com a vitória do capitão Jair Bolsonaro.

Sou descrente de fundações e (re)fundações, ainda que rupturas bruscas ou arranjos políticos bem urdidos deem direção e sentido arrojados a nações.

Nenhuma das situações acima cumpriu com as promessas, frustrando as esperanças de quem nelas apostou suas fichas. Ressalto: estou falando de pessoas bem intencionadas – e não de crentes radicais.

Provavelmente nada e ninguém representa como o Brasil mudou muito para mudar pouco como José Sarney, eleito em 1954 para a Câmara de Deputados, na qual estreou, no ano seguinte, para nunca mais sair de cena.

Ainda hoje, o último donatário do Maranhão mexe os pauzinhos nos bastidores e certamente, mesmo depois de morto, permanecerá, provavelmente mais apagado, atuando por meio de seus filhos, Roseana e Zequinha.

São 65 anos fazendo política e manobrando no palco ou nos bastidores a vida pública nacional. Ninguém, creio, chegou a tão longe.

Em 1966, Sarney saiu do parlamento para tomar posse como governador do Maranhão, evento filmado por... Glauber Rocha, ícone do cinema novo e da esquerda brasileira.

No discurso de posse, disse Sarney que o estado “não quer mais a desonestidade no governo, a corrupção, a violência como instrumento de política, a miséria, o analfabetismo e as mais altas taxas de mortalidade infantil”.

Desde então, o Maranhão, governado quase sempre pelos Sarney ou aliados, segue sendo esbulhado e nele imperam as mais altas taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil.

Depois de sair da chefia do executivo estadual, foi eleito senador, tornou-se presidente nacional da ARENA, o partido que dava sustentação ao regime instaurado em 1964, Presidente da República, depois da morte de Tancredo Neves, e presidente do Senado por várias vezes.

Paralelamente, o coronel-oligarca lustrou sua biografia sentando numa das cadeiras da Academia Brasileira de Letras.

E assim tem um pé atolado na lama e outro nos carpetes frequentados por intelectuais.

Nem mesmo a eleição de Lula, em 2002, “um inimigo de classe de Sarney”, como ex-sindicalista chegou a dizer num dos debates dos quais participou no pleito de 1989, marginalizou o coronel, oligarca e acadêmico.

inte anos depois, o mesmo Lula afirmou, no Cazaquistão, que Sarney, então senador pelo Amapá e acusado de usar atos secretos para nomear parentes na Casa, “tem história no Brasil suficiente para não ser tratado como se fosse uma pessoa comum”. (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1806200902.htm)

O político-símbolo do Brasil do final do século passado e início deste não é Fernando Henrique, Lula, Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, etc. É José Sarney a síntese da vida pública brasileira do período e isso explica – e muito – onde estamos e para onde vamos.