Simplesmente Marília

25 de Novembro 2021 - 05h48
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Meu gosto musical sempre foi muito apurado. Eu diria também seletivo em se tratando das novas tendências da Música Popular Brasileira.

Dizer que acompanho todos os estilos seria mentira. Na verdade, sigo apenas aqueles que são do meu agrado: Bossa Nova, Pop, Pop Rock. Do Sertanejo, só me lembro dos clássicos: Leandro & Leonardo, Chitãozinho & Chororó e Zezé di Camargo & Luciano, que, quando criança, ouvia no início da década de 90, porque meus avós e tios também ouviam. No entanto, não foi um estilo popular que deixou marcas em mim como a Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso, o RPM (dentre tantos do Rock Nacional) e os demais nomes da MPB: Ivan Lins, Flávio Venturini, Guilherme Arantes, Tom Jobim, Toquinho etc.

De uns 10 anos para cá, a única estrela do Sertanejo que me atraía por sua voz e por seu estilo, voltado para o Folk Song e para o Country, foi Paula Fernandes. Identifiquei-me com as suas melodias românticas, seguras, seu ritmo tão sentimental quanto os temas das letras que eram cantadas. Em 2015, eis que surge outra estrela, que não teve muito a minha atenção: Marília Mendonça. Por quê? Talvez pelo estilo “exageradamente” sofredor e pelos coloquialismos presentes no texto verbal, dando origem ao que depois se denominou “Sofrência”. Daí, o apelido: a Rainha da Sofrência. A língua portuguesa tem disso, a cada época germinam novos neologismos que caem no paladar do povo, e este é quem determina os rumos que ela vai tomar, assim como a própria MPB. Marília abordava temas banais que integravam o cotidiano do povo brasileiro, especialmente das populações interioranas. O que explica tanto sucesso e tanta comoção com a sua morte prematura em 05 de novembro?

Até para mim que nunca fui seu fã, a notícia de que seu avião particular, que voava em direção à cidadezinha de Caratinga/MG, para mais uma agenda de shows, caíra na zona rural, região serrana, explodiu como uma bomba no meu peito. Eu parecia não acreditar. Marília Mendonça estava no auge da sua fama. Aspirava toda a plenitude do seu ser. Foi reverenciada por grandes celebridades da MPB como Caetano Veloso, o qual fez uma alusão à sua pessoa em uma faixa sua intitulada “Sem samba não dá”, do álbum Meu coco. Houve até uma canção composta por Marília, sob encomenda, e interpretada por Gal Costa em seu novo álbum A pele do futuro. Trata-se da faixa “Cuidando de longe”. Difícil crer, porque para mim era só mais uma cantora sertaneja com um estilo bem “brega”. A explicação para tamanho carisma e destaque, possivelmente, esteja na ousadia que teve em abordar, com tanta naturalidade, temas sociais até então tabus.

Algumas de suas canções mostravam como se encontravam as relações humanas, principalmente as amorosas: em total banalidade. Traições, relacionamentos conturbados, um eu feminino que passava a fazer coisas que só os homens faziam, como beber cerveja, tequila e ainda subir em cima de uma mesa, aproveitando o momento de libertinagem. Que intensidade! Era este o perfil da gente rural. “Bem pior que eu você/Que não deixa ela/E ainda vem me ver”, escreveu em uma de suas letras. “Iê! Iê! Infiel/Agora ela vai fazer o meu papel/Daqui um tempo, você vai se acostumar/E aí vai ser a ela a quem vai enganar/Você não vai mudar”, observou em outra. Realmente, é muito comum viver a vida tão intensamente, correndo todos os riscos e tentando ser feliz do seu próprio jeito, ainda que você se depare com a censura alheia no fim das contas. Ao mesmo tempo, Marília Mendonça expôs um novo modelo social: aquele no qual a mulher ganha mais espaço e maior liberdade para planejar e agir conforme seus próprios sonhos e vontades. É o que as feministas classificam como “empoderamento”; palavra que até então eu desconhecia e tinha ido consultar no Aurélio. Achei, dentre duas acepções, a mais próxima do contexto, soando até como gíria: “Passar a ter domínio sobre a sua própria vida; ser capaz de tomar decisões sobre o que lhe diz respeito: empoderamento das mulheres”. Cada vez mais autônoma, a mulher busca produzir, capacitar-se, colocar-se ao lado do homem como ser pensante, transformador. Tudo isso para nós é algo ainda instigante, sobretudo quando se torna midiático. O que antes estava se modificando lentamente e despercebidamente agora está aí, às claras, para quem quiser ver. Marília não tinha vergonha disso e muito menos de ser uma cantora sertaneja que falava do sofrer e do que visivelmente fazia as mulheres sofrerem. Tal dor exigiu delas mais imposição, coragem e força para desnudarem as suas aflições; porém, tudo de uma forma muito intensa e objetiva. Não estávamos acostumados a essa maneira de expressão feminina que se destacaria neste século. Até pouco tempo, eu via a gente simples, que gostava desse estilo musical romântico, como uma parcela da população brasileira mais oprimida ou comedida talvez. Nunca como cidadãos que resolvessem gritar ou serem ouvidos enquanto pessoas à procura de respeito quanto às próprias decisões. É isso!

Somente por meio da arte, neste caso da música, é que passamos a nos entender mais na atualidade. Quem sabe até repensarmos a nossa maneira de amar, de nos relacionarmos uns com os outros, das mais variadas formas, de nos expressarmos e de nos conhecermos no que se refere a quem somos e ao que queremos de nós mesmos! Marília nos ensinou o caminho. Se o Sertanejo deu os seus primeiros passos na década de 80 e 90, com mulheres como Roberta Miranda, ainda muito timidamente, como todo estilo musical, evoluiu com a sociedade, aceitando mudanças. Normal! Cada geração com os seus respectivos costumes.

O sertanejo passou a ser uma tendência da MPB com aspectos políticos e sociais e teve a missão de problematizá-los sem poupar vocábulos. Marília Mendonça liderou uma legião de cantoras a seguirem essa vertente dentro do que era chamado de “brega”, “sofrência”. Com um mundo no qual valores morais se invertem a todo momento, é preciso amoldar-se e enfrentar novos desafios. Marília não teve medo. Jogou-se de corpo e alma e venceu-os um a um. Se ela pôde, nós podemos.

“Maravilha Mendonça!”. É como está escrito na letra da canção “Sem samba não dá”, de Caetano Veloso. É, portanto, maravilhoso saber que a semente foi plantada, a árvore cresceu, deu frutos bons e continuará a ser bem cuidada. Para os admiradores, Marília Mendonça já é imortal na música brasileira; para os que só escutavam suas canções esporadicamente, também, dado que tudo que vem contribuir para humanizar (e não aludo aqui a palavra apenas no sentido de fazer o bem, mas no sentido de suscitar um debate sobre quem somos, sobre no que nos transformamos) é válido. Afinal, a vida para nós continua e sempre cheia de responsabilidades. A maior delas agora chama-se “viver”. Viver com amor, com a crença no que é possível ser e fazer diferente se for o caso. Viver honestamente, com o esforço de quem enxerga no outro algo que precisa de entendimento, de uma chance. É o que visualizo em Marília; é a grande e sutil lição deixada. Ela, uma pessoa decidida que cantava um estilo musical simples e que a fez única e simplesmente Marília.

 

Por Paulo Caldas Neto