
Patriotismo e democracia foram e são sobejamente usados ao longo da história, por déspotas, tiranos e oportunistas para solapar a pátria e a democracia.
Certa feita, o literato inglês Samuel Johnson disse que o “patriotismo é o último refúgio do canalha”. Millôr Fernandes, completou: “No Brasil, é o primeiro”. E reforço a citação de ambos, Johnson e Millôr, porque por aqui o recurso retórico ao patriotismo cresceu assustadoramente nos últimos anos, tangenciado por um outro, o qual mencionamos mais abaixo.
Samuel Johnson viveu no século XVIII e era estreitamente ligado aos Patriotas, tendência partidária daquela época, na Inglaterra, que começara a se corromper pela presença maciça de oportunistas.
Certamente, quando criticava o patriotismo o escritor inglês não se referia ao amor real e generoso que o patriota genuíno sente pela pátria, mas ao “pretenso patriotismo que tantos, em todas as épocas e países, têm usado como um manto para os próprios interesses”, tanto que a ênfase é dada aos canalha e não ao patriotismo, pois, para ele, este sentimento pode ser facilmente manipulado por qualquer indivíduo mal-intencionado, canalha, que confrontado, pode demonstrar fervor patriótico falso a fim de explorar este sentimento e, por meio dele, avançar seus interesses vis e mesquinhos. Por isso mesmo, o patriotismo termina alçado, por uma constelação de estudiosos do tema, a uma das mais destrutivas criações humanas, porquanto ter se tornado uma concepção moralista e farisaica e discriminadora. O igualmente magistral Henry Louis Mencken, jornalista cáustico norte-americano em seu Livro dos Insultos sentenciou: “Desde que o primeiro gorila avançado vestiu cuecas, franziu a testa e saiu por aí dando conferências” [sempre que ouvirmos] “um homem falando do seu amor por seu país, saibam que ele espera pagamento por isso”.
Olhando como se fez e se faz política, no Brasil, avanço um pouco mais na reflexão de Johnson e digo que a defesa da democracia tem sido espaço de farisaísmo e valhacouto de canalhas de todos os quadrantes políticos, da direita à esquerda. E antes que algum apressadinho corra para me acusar de criticar a carta em defesa da democracia, que correu célere, já adianto: a crítica não é a ela, mas é a ela também, afinal em meio a milhares de assinaturas há muitas de conhecidos propineiros, pagadores e recebedores, espécie de abutres que embolsaram graciosas somas de dinheiro para corromper o verdadeiro jogo democrático. Ou devemos esquecer os propinodutos do mensalão e do petrolão? Ou, voltando ainda mais no tempo, devem ser varridos de nossa memória os anões do orçamento? Ressalto, ambas as espécies, propineiros do mensalão e do petrolão e anões do orçamento, estão entre os signatários da tal carta. De qualquer forma, minha crítica não é à carta em defesa da democracia, que, segundo os seus signatários – entre eles mensaleiros e afins e apoiadores de ditaduras em várias partes do mundo, bem como protegidos de tribunais superiores, com processos engavetados há anos –, está em risco.
Sou partidário da democracia, mas não necessariamente de democratas. Estes, por vezes, são equivalentes aos patriotas expostos por Samuel Johnson.
Há várias formas de solapar também a democracia, inclusive utilizando-se dos próprios mecanismos que garantem a sua força e eficácia. Por isso, dirigentes eleitos democraticamente podem se constituir em pontas-de-lança de ataques às liberdades democráticas. Por exemplo: recorrer ao uso desmedido da publicidade oficial e tentar aprovar legislação que limite a liberdade de imprensa, mecanismos utilizados por governos democraticamente instituídos, podem minar a democracia. Atacar as instituições democráticas com insinuações levianas idem.
O maior estadista do século XX, Winston Churchill, ele mesmo um exemplo de líder que tinha reservas profundas com a democracia de massas, chegou a dizer que “a democracia parecia ser o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”. Da mesma forma que Samuel Johnson, quando se referia a patriotas, sabia Churchill que em toda classe política havia os democratas verdadeiros e os falsos. Os primeiros atuam no sentido de construir um regime no qual a democracia é um meio, e não um fim; aqueles, eles mesmo ou os seus, pretendem se perpetuar no poder.
Termino citando Nelson Rodrigues: “O mundo estaria muito melhor se o homem de bem tivesse a mesma ousadia do canalha”.
Olho aberto para identificar canalhas. Eles estão em todo lugar.