Há futuro no Future-se?

09 de Agosto 2019 - 18h22
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Li um sem-número de análises sobre o programa Future-se – lançado pelo governo Bolsonaro, distante ideologicamente até do centro político –, quase todas feitas com o fígado. Também ouço manifestações em série, contra ou a favor, de quem não leu a proposta.

Talvez seja mesmo difícil, neste momento conturbado e até meio irracional, analisá-lo com base em evidências factuais e minimamente racionais

Dirigentes de instituições federais de ensino (IFES), professores e alunos dizem que o Future-se é uma volta ao passado, pois impedirá “o acesso dos pobres ao ensino superior”. Já há quem o apelide de Fature-se, pois seria a entrega das IFES à sanha do mercado financeiro, de banqueiros sagazes e sequiosos por encher as burras com o dinheiro do sofrido povo brasileiro.

Não sou especialista em quase nada. Mas, curioso, gosto de mexer e remexer em textos sobre variados assuntos, para me inteirar deles e evito discutir com quem fala ou escreve com desconhecimento mínimo do assunto sobre o qual se propõe a falar ou escrever. Quem desconhece um assunto e resolve debatê-lo faz críticas genéricas demais ou parte para a negação pura e simples do que leu. Mais, quem desconhece um tema e insiste e resolve discuti-lo é, no mínimo, intelectualmente desonesto.

O Ministério da Educação apresentou o Future-se oficialmente para a mídia no dia 17 de julho último, sem que houvesse participação das IFES na sua elaboração. Esta foi, possivelmente, a crítica mais repetida. 

Existem alguns vícios de origem, um já citado acima: o alijamento das IFES do processo de discussão e de construção da proposta.

No momento, o MEC propõe um período rápido de consulta pública, pressa que termina por ser outro problema, dado que um plano complexo como o apresentado exige prazo dilatado para discussão detalhada. Ademais, o momento escolhido para lançamento da proposta não foi o mais propícia (ou foi?) – com as IFES em situação de colapso orçamentário, advindo do bloqueio de 30% da verba de custeio e de capital.

Uma leitura preliminar, mesmo aligeirada, suscita dúvidas primárias. Identificar os problemas, porém, não é e nem deve ser impedimento para o diálogo que visa ao aprimoramento da projeto.

Se as IFES querem sair da situação de xeque em que estão, os seus dirigentes devem apontar os erros da proposta e levantar sugestões para ajustá-la, sem deixar de reconhecer que ela pode carregar pontos positivos. Negá-los por pirraça, birra ou vinculação ideológica denota imaturidade, até insanidade.

Há algumas constatações positivas quanto ao mérito do Future-se: o MEC, que já tratou as IFES como locais de balbúrdia, reconhece que elas fazem um trabalho meritório para o futuro do país; muitas das atividades desenvolvidas nas IFES foram agrupadas em um documento único, compilando boas práticas com propostas, positivas ou não, para o futuro do financiamento delas (IFES) e o plano tenta solucionar um problema concreto, a saber, o desestímulo para a captação de recursos próprios, decorrente de uma legislação que exclui os recursos captados do orçamento das IFES.

O Future-se é – e não poderia ser muito diferente – uma proposta cheia de brechas e algumas zonas turvas, mas chama a atenção para um problema concreto do sistema de ensino superior, técnico e tecnológico brasileiro, a saber, como financiar instituições educacionais que precisam, por uma questão de sobrevivência, estar presentes numa disputa globalizada.

Um dos graves problemas de nossas IFES é que funcionam como departamentos públicos nos quais a confusão entre público e estatal é corriqueiro, onde buscar recursos privados é anátema, apontou um experiente professor universitário.

Parte das discussões e debates que tenho assistido sobre o Future-se tem sido uma sucessão de chavões e jargões expostos por pessoas que se vestem de intelectuais e falam como sindicalistas. Que sindicalistas assim ajam e se comportem, não faço reparos. Afinal, se assim não fizerem serão apodados como pelegos e “vendilhões da classe trabalhadora”. Agora, professores e intelectuais vestirem o modelito sindical como se acadêmico fosse demonstra a pobreza da discussão e põe no mesmo vagão os interesses das corporações sindicais como se interesses das IFES fossem, e nem sempre – ou quase nunca – são.

O Future-se, conforme estabelece a proposta, funcionará a partir de adesão. As IFES que aderirem estarão aceitando as regras de gestão. As que tiverem dificuldades para captar recursos serão auxiliadas pelo Ministério da Educação, que assume o compromisso de aportá-los. Quem não aderir à proposta, fica como está.

O projeto toca em questões cruciais e, por isso mesmo, implicará em alterações em vários marcos legais, deixando mais flexível a gestão das IFES, retirando-as do tacão asfixiante da gestão da administração pública, por meio da contratação de uma Organização Social (OS).

As OS podem se beneficiar da cessão de servidores da instituição contratada, mas terão de agilizar compras e contratação de serviços sem as costumeiras dificuldades da execução orçamentária que amarra o setor estatal, cuja consequência será, em tese, a queda do custo de contratação de uma pesquisa ou de um serviço.

Há pontos mal explicados e algumas inconsistências. A atuação da OS se insere no primeiro; a expectativa de formar um fundo de R$ 100 bilhões com o ativo imobiliário das IFES insere-se no segundo.

Ouvi a fala de um professor dizendo que o programa trará hierarquização das IFES, como se isso já não existisse hoje. Ora, como a sociedade e mesmo a academia vê a UFRJ, UFMG, etc. Ou mesmo as estaduais USP e UNICAMP? Há quem diga que a hierarquização de hoje vai se aprofundar, com algumas IFES se fortalecendo ainda mais, como centros de ensino e de pesquisa, e outras restringindo-se “apenas” ao ensino. No entanto, nem toda instituição de ensino superior, para ser importante, precisa ser instituição de nomeada. Talvez até cumpra melhor o seu papel se fizer aquilo que faz melhor. Se se destaca como instituição eminentemente de ensino, que assim seja; caso consiga ser muito boa em ensino e extensão, que faça ambas as coisas; se mantiver de pé, e bem, o tripé ensino, pesquisa e extensão, que siga a trilha.

O caminho a ser percorrido é longo e árduo. O Future-se é apenas uma proposta. Inicial, ressalte-se, em fase de consulta pública, que seguirá ao Congresso Nacional, será bombardeada e submetida a negociação, antes de se tornar lei (ou não).

Discuti-la de forma madura e racional deveria ser a tarefa nas IFES. No entanto, mal dado o pontapé inicial, os jogadores, que reclamaram de não terem sido ouvidos antes, sentam-se em cima da bola e se recusam a jogar. Não parece ser uma atitude inteligente e perspicaz, pois podem perder o mando de campo, que sabe-se lá quando vem de novo.