Governo do RN quer quadruplicar compras de agricultores familiares e assentados

04 de julho 2019 - 03h56
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Era cerca de meio-dia e meia quando a reportagem chegou à casa do casal Rita Maria de Lima, 52, e Antônio Pereira Torres, 61, e os encontrou numa cena bem típica de interior: estavam debulhando feijão na varanda de sua residência, no distrito de Córrego, a 10 km do centro de Apodi, distante 345 km da Capital, no Alto Oeste potiguar. Eles representam um pequeno recorte da quantidade considerável de famílias de agricultores que serão beneficiados, diretamente, através da Lei 10.536/19 sancionada pela governadora Fátima Bezerra, na noite desta quarta-feira (03), instituindo o Pecafes (Programa Estadual de Compras da Agricultura Familiar e Economia Solidária).

A assinatura ocorreu na abertura do Fórum de Secretários da Agricultura Familiar, realizado na Cecafes (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária). Segundo dados da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (Sedraf), o Estado é hoje o maior comprador dos alimentos da agricultura familiar e movimentou, só em 2018, cerca de R$ 5 milhões desse mercado. Para 2019, a partir da sanção de Fátima, a expectativa é de que esse valor alcance a faixa dos R$ 20 milhões.

A exemplo de outros agricultores, a rotina de Dona Rita e Seu Antônio é puxada. Eles estavam na função para entregar uma encomenda de 6 kg de feijão. Os demais afazeres, no entanto, já haviam sido todos cumpridos. A casa alpendrada, apesar de simples, estava impecavelmente limpa. O que para algumas pessoas é um tremendo sacrifício - acordar cedo, trabalhar no campo, cuidar de quintal e das criações - para eles é um prazer. Com um sorrisão no rosto, ela relatou que acordou às cinco da manhã, colheu o feijão com o companheiro, limpou a casa e fez o almoço. “Eu sou agricultora desde criança e foi assim que aprendi a viver nesse sertão de meu Deus”, disse. Ele também não escondia sua satisfação pelo fato de ter saúde e disposição para a lida. “Para mim não tem coisa melhor do que poder trabalhar”.

A riqueza dos quintais da agricultura familiar

Há alguns anos, a realidade das famílias de agricultores de Apodi, lugar conhecido pela fertilidade de suas terras, que se destaca pelo cultivo do arroz vermelho (também chamado de arroz da terra), mudou um pouco quando o pessoal começou a diversificar suas culturas. Devido às frequentes estiagens, os agricultores foram aconselhados a produzir em áreas menores e começou então a fase dos “quintais”, que são áreas de pelo menos dois hectares onde se cultiva desde hortaliças às frutas, e se dedica também um espaço para a criação de galinhas, porcos, carneiros e outros animais para abate. Antes, trabalhava-se o conceito das grandes lavouras de macaxeira, mandioca, milho, feijão, e claro, o arroz, em áreas extensas.

Devido às dificuldades climáticas e de financiamento, perdia-se muitas vezes a produção toda. O presidente da Coopapi (Cooperativa Potiguar de Apicultura e Desenvolvimento Sustentável) Reginaldo Câmara, que representa cerca de 300 cooperados, afirma que a diversificação evita as perdas, pois as produções atendem tanto ao varejo quanto ao atacado. “Aqui tudo se aproveita. Do caju, quando a fruta cai no chão e não se pode aproveitá-la para consumo humano, retira-se a castanha e a polpa vai para os animais”, exemplifica. Na varanda daquela casa tão pitoresca, uma prova dessa diversidade. A palha de carnaúba, abundante na região, desfiada, pronta para virar chapéu e outros utensílios.

A cooperativa tem papel primordial intermediando as transações comerciais, tanto as diretas para o público final, que são realizadas na lojinha Budega da Agricultura Familiar, situada no centro da cidade de Apodi, e também na Cecafes em Natal (esquina da rua Jaguarari com avenida Capitão-Mor Gouveia, no bairro de  Lagoa Nova), quanto as vendas para entes públicos. “Muita gente já teria morrido se não fosse a Coopapi”, atesta Seu Antônio. Ele acorda às 3h para aproveitar o desconto na tarifa de energia, liga a bomba para irrigação, cuida de uma coisa e de outra até chegar a hora do almoço. Além dos vegetais, eles colhem mel e também produzem ovos. Não é raro saírem de moto, carregados de produtos fresquinhos, para entregar na vizinhança.

O casal tem três filhos e todos eles, incluindo as noras, trabalham no campo. Utilizam cerca de 10 hectares, mas a área que lhes pertence é bem mais extensa. Ainda não gozam de alguns incentivos de financiamentos públicos, pelo fato de a propriedade ter sido herdada. Porém, conseguem viver dignamente da agricultura e, há poucos dias, um dos filhos conseguiu comprar seu primeiro trator. Alfabetizados pelo EJA (Escola de Jovens e Adultos), Dona Rita e seu Antônio são exemplos de que é possível ser feliz com sua vida simples e saudável do interior. “Aprendi a utilizar o gergelim e melhorei muito da artrose. Eu torro, piso no pilão e utilizo a farinha na alimentação. Ah, também tomo meu suco verde com mastruz, manjericão, couve, limão e abacaxi e me sinto muito bem”. Isso sim é lição de vida. 

Com Pecafes, vendas ao Estado garantirão escoamento da produção

Mesmo com a dinâmica de variedade de produção, é inegável a importância de um programa como o Pecafes, pois o mesmo estabelece a obrigatoriedade de o Governo do Estado comprar pelo menos 30% de gêneros alimentícios produzidos pela agricultura familiar, para suprir hospitais, restaurantes populares, presídios, entre outras instituições que fornecem alimentação preparada. O projeto de lei, que contempla um antigo anseio da categoria, proposto pela deputada Isolda Dantas, foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa. “Esse projeto vai colocar a agricultura familiar do estado em outro patamar. Já está mais do que comprovado que as políticas de compra governamentais organizam o processo produtivo, porque o grande gargalo da agricultura é onde vender”, explica o Secretário da Sedraf.

No caso específico de Apodi, os agricultores contam com apoio das entidades de classe (sindicatos e cooperativas), e também da prefeitura, que os incluem nos programas de compras diretas e indiretas. Eles também têm acesso à estrutura do Governo do RN, como Sedraf, Emater-RN (Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural), Emparn (Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte), entre outros órgãos, para orientações técnicas e outras especificidades. No entanto, ainda carecem de mais objetividade quanto ao escoamento da produção. Com a sanção da nova legislação, as 90 mil famílias potiguares com Daps ativas (Declaração de Aptidão ao Pronaf), documento que permite aos agriculturas familiares ter acesso às políticas públicas, linhas de crédito, entre outros, estarão habilitadas a participar das compras governamentais.

As demais famílias contabilizadas pela Emater, cerca de 145 mil que estão com Daps  inativas, continuarão recebendo assistência da Sedraf para regularizarem sua situação. Entre as metas da secretaria, os mutirões de documentação e concessão de títulos fundiários representam dois grandes passos rumo à inclusão do maior número de famílias aos programas públicos. A solenidade de hoje à noite, na Cecafes, contará com a presença de representantes dos Movimentos Sociais, da Fetraf (Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar), além de gestores e gestoras ligados à Agricultura Familiar e Economia Solidária do Nordeste.