Fake news e política: potencialização da mentira

06 de Dezembro 2021 - 09h04
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Há duas décadas e meia, a internet era uma esperança e, às vezes, alvo de piada. Hoje, a piada não é; piada é não estar na internet.

Tente imaginar sua vida sem ela.

O ciclo das inovações é exatamente assim. Quando surgem, muitas vezes, parecem bobagens. Depois de algum tempo, à medida que se desenvolvem, transformam completamente as nossas vidas e as inovações passam de esperança e piada a fatos revolucionárias. Hoje, está cada vez mais curto o intervalo entre tais ciclos. Tudo indica que encurtará ainda mais daqui em diante, com prós e contras.

As inovações interferem em toda a vida social e, como não poderia deixar de ser, o fenômeno político não está imune a elas.

Atravessamos um tempo de disputa entre mentiras políticas, sociais e econômicas apoiadas pelas mentiras da mídia, pelas fake news difundidos por meio de grupos (as mais danosas) ou por ações individuais sem grande impacto. Cada um se acha no direito de opinar sobre tudo, apropriando de um discurso que julga apropriado, atribuindo a outros o que percebe como negativo.

Cabe, antes de prosseguir, uma pergunta: o que é fake news? Não seriam apenas mentiras? Mentiras potencializadas pelas inovações tecnológicas que tornaram o mundo uma aldeia global, para citar estudioso do fenômeno comunicacional?

Etimologicamente, a palavra mentira vem do latim mentire, que remete à palavra mens (mente, inteligência, intenção). Em outras palavras, é o ato de alguém que tem mente, inteligência e intenção e modifica as informações para obter algum proveito, livrando-se d’algumas situações constrangedoras, incômodas.

Em 2015, Umberto Eco sentenciou que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. E completou: “normalmente, eles eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. A televisão “já havia colocado o idiota da aldeia em um patamar no qual ele se sentia superior. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.

Há uma variedade imensa de mentiras e de mentirosos assim como de razões para mentir. Não é meu objetivo fazer uma análise de casos e nem refletir sobre os métodos apropriados para detectar mentiras e mentirosos.

Cada mentira ou ato que chamamos genericamente de mentira, porque provem de nossa mente, esconde e revela algo da realidade e reflete uma situação diferente numa imensa escala de razões justificando as mentiras

Não existem fake news; existem mentiras! Fake news representam mais uma submissão a uma língua estrangeira. É a tentativa de tornar chique uma palavra que traz em seu bojo sordidez. A palavra correta é mentira, mais precisamente a mentira deslavada, urdida no esgoto das ideologias, sejam elas quais forem, e replicadas na internet, que tem potencial de difusão avassalador.

A mentira dos homens públicos não pode ser justificada apenas por nossa finitude humana ou pela condição pecadora da humanidade.

Todos os políticos mentem. Alguns mais; outros menos. Todos utilizam a mentira como ferramenta política sistemática. O que os diferenciam entre si: o volume e a intensidade com que usam a mentira como uma lança política. A prática é sobejamente relativizada, sobretudo na política, notadamente quando utilizada por aqueles a quem rendemos homenagens. Manipulações e dissimulações sempre foram usadas à farta em campanhas eleitorais, com os candidatos adotando a inverdade como tática e estratégia.

Nicolau Maquiavel disse, constatando um fato da política, sem maquiagem alguma e separando a política da ética e da religião, que a mentira é útil aos que desejam conquistar e manter o poder.

Pouco mais de quatrocentos depois de Maquiavel escrever sua obra mais conhecida, os regimes totalitários, à direita e à esquerda, fizeram a mentira mudar de patamar (ou seria de patamá?) como instrumento político, como afiançou Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. A lógica embutida na formulação do famoso e diabólico ministro da propaganda do regime nazista era precisa: as pessoas duvidariam da falsidade da mentira pela insistência e, posteriormente, considerá-la-ia verdadeira. O próprio Adolf Hitler dizia que as “as massas acreditam muito mais facilmente numa grande mentira do que numa pequena”.

Para quem acha que isso ocorreu só de um lado do espectro político, não esqueçam que nos anos 1930 pessoas desapareceram dos registros fotográficos na União Soviética. Vejam matéria sobre o assunto aqui (https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-42810209).

Transformar deliberadamente a mentira em realidade pode ser um instrumento eficaz para ascender ao poder. Por isso, Hannah Arendt dizia que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e parece que ninguém pensou em incluir entre as virtudes políticas a sinceridade. Por sinal, escrevendo sobre o fascismo, a pensadora alemã afirmou que os fascistas exploravam o antigo preconceito ocidental que confunde realidade com verdade, tornando “verdadeiro” o que “até então só podia ser descrito como mentira” e demonstrando profundo desprezo “aos fatos como tais”.

Tirando a dose elitista do pensamento de Eco, o diagnóstico dele sobre o que ocorria em tempos passados e ocorre, em volume e intensidade maiores, nos dias que seguem é correto. A polarização, dados os algoritmos, domina o discurso público, com muitos socados em trincheiras nas quais os extremos estão cada vez mais afastados do centro, criando uma espécie de espaço ideológico vazio. Qualquer um que ouse ficar por ali, tentando estabelecer um mínimo de racionalidade e conciliação será brutal e impiedosamente atacado pelos dois lados, que, insatisfeitos por apenas alvejarem-se, destilam ódio contra possíveis apaziguadores.

Esse pessoal vive numa guerra, porque é assim que enxerga a política. E “na guerra”, como indica frase famosa e controversa, “a primeira vítima é a verdade”.

Não adianta fechar os olhos: traços do DNA de Goebbels e da máquina de propaganda soviética estão espalhados nos discursos e nas narrativas políticos contemporâneos.