
A nossa vida, de modo geral, e a política, em particular, vive de mitos.
A direita e a esquerda só sobrevivem por meio deles, notadamente quando vêm tocados por fundamentos ideológicos.
Por quatro anos ou mais o Brasil foi sacudido pelo mito do Mito, como os seguidores do ex-Presidente Jair Bolsonaro chamam o agora ex-Presidente.
Na América Latina proliferam pai-dos-pobres, caçador-de-marajás, rainha-dos-descamisados, etc.
Evo Morales foi o primeiro índio a chegar à Presidência na Bolívia. Lula, o primeiro pobre a ocupar, no Brasil, um palácio presidencial. Nicolas Maduro o primeiro motorista a dirigir os rumos venezuelanos (não citemos que Cristina Kirchner foi a primeira boneca a sentar na cadeira presidencial argentina).
A lista poderia ser infindável. Dos citados acima, apenas Lula andou, durante todo o primeiro mandato e parte do segundo, nos trilhos da racionalidade política e, principalmente, econômica.
Algumas cavalgaduras não toleram que sejam citadas a origem étnica e a origem social (a primeira, dizem, configuraria racismo e a segunda, preconceito social) dos cidadãos, mas fazem festa quando há referências à vitória e origem social de Morales, de Lula e de Maduro. Eles, para esse pessoal, são a prova viva de que novos preceitos políticos, econômicos e sociais estiveram na ordem do dia na América Latina.
Não há dúvida de que a vitória de Morales, de Lula e de Maduro foram conquistas pessoais imensas. A sagacidade política certamente desempenhou papel decisivo na vitória que conquistaram. Porém, não convém imaginar que o exercício da Presidência da República é algo que costumeiramente se consiga com sucesso sem que se passe por um processo de educação mais elaborado. O índio, o operário e o motorista não são dotados de uma sensibilidade superior para gerir os negócios de Estado pelo fato de serem índio, operário e motorista.
A esquerda, é bom que se assinale, não gosta de fórmulas testadas e bem-sucedidas. São adeptas da lei da contra-indução (atribui-se ao economista Mário Henrique Simonsen a sua formulação, expressa no princípio segundo o qual se uma experiência deu errado em “n” tentativas, repita-a, porque dará certo na enésima primeira) e desdenham experiências meritórias se fugirem minimamente aos ditames teóricos das cartilhas revolucionárias ou ultra reformistas. Por isso, o Uruguai, o Chile e a Colômbia são acusados de aplicarem preceitos neoliberais ou de fugirem do abecedário socialista.
O que fazem Uruguai, Chile e Colômbia?
Alguma privatização e disciplina fiscal, buscam aumento de produtividade, respeito aos preceitos democráticos e rejeição a regimes autoritários. Tudo o que, de certa forma, o Brasil adotou e pavimentou o caminho para os anos de crescimento do governo Lula, construídos sobre o trabalho árduo de economistas experimentados durante os anos-Itamar Franco e Fernando Henrique e o primeiro mandato do líder petista.
Quando o Presidente operário abandonou parcialmente, no segundo mandato, a cartilha, digamos, neoliberal legou à sua sucessora um regime que se diluiu – com inflação ascendente, queda de produtividade e ameaça de recessão. O quadro foi devidamente aprofundado por Dilma e abreviou o seu segundo mandato.
A esquerda fala que hoje, após maré neoliberalizante, a América Latina pode experimentar novamente ventos pró-socializantes. A eleição de Lula seria o início da caminhada. Vê-se na Argentina e mesmo no Brasil um nacional-desenvolvimentismo anos 1950-60 e caneladas nos Estados Unidos, sem contar lavajatismo redirecionado. É caminho para o caos, lugar próximo e para onde a América Latina teima em voltar de tempos em tempos.
Parece que vivemos a sina dos mil anos de solidão, dez vezes mais do que o título de Gabriel Garcia Marques, ou num labirinto da solidão, como escreveu o fenomenal Octavio Paz, ambos gênios da literatura latino-americana.
A América Latina só sairá da maré de atraso em que teima em ficar se revogar a retórica atrasada e tomar pela mão aquilo que o saudoso Mário Covas propôs na eleição presidencial de 1989: um choque de capitalismo.