Regula, regula, regularis

04 de Janeiro 2024 - 06h49
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Nunca quis me alinhar à esquerda ou à direita e, por isso, sou apodado como isentão por amigos à esquerda e à direita; para os inimigos à direita, sou esquerdista; para os da esquerda, direitista.

No Brasil, a esquerdosfera se apresenta e se passa, com certo sucesso, como democrática e a direitosfera, como liberticida. Ambas são intolerantes e autoritárias e adoram posar de vítimas. Atacam mas não querem ser atacadas e, quando o alvo do ataque reage, trajam vestes de vítimas da intolerância. Conheço os tipos. Já fui alvo de um sem-número deles e sempre reagi à altura porque fui ensinado que nos meus calos ninguém pisa.  

Nos dias que seguem, dados os casos recentes da “Choquei” e de Breno Altman, a parte mais à esquerda da esquerdosfera anda gritando que a liberdade de expressão de alguns dos seus está sendo violada; antes, era a direita mais à direita da direitosfera que andava clamando por liberdade de expressão. Uma quer calar a outra. Candidamente. 

Sou contra criminalizar opinião e mais ainda quando o argumento é baseado em acusações de racismo (inclusive antissemitismo), de homofobia e de misoginia. Calar pessoas não é e nunca foi o caminho mais adequado para a construção de um mundo tolerante. Todos devem ter o direito de dizer o que pensam, ainda que suas manifestações de pensamento sejam as mais estapafúrdias possíveis. Vale para qualquer espectro ideológico. Agora, entrou na briga e escolheu as armas, mantenha a toada e segure a onda. Diz o ditado popular: “Quem não pode com o pote não pega na ‘rudia’.”

Certa feita, o youtuber Monark andou falando, de forma açodada e atabalhoada, sobre o nazismo (https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2022/04/4999194-monark-fala-apos-cancelamento-a-galera-da-internet-e-muito-ingrata.html; https://www.metropoles.com/colunas/leo-dias/saiba-quem-e-monark-e-por-que-ele-esta-sendo-cancelado-na-web; https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/monark-e-desligado-do-flow-podcast-apos-defender-existencia-de-partido-nazista/). Há pouco Breno Altman, ferrenho algoz nas mídias sociais das ações do Estado de Israel contra os palestinos, andou escrevendo coisas fortes – negando o direito moral à existência do Estado de Israel (https://www.ocafezinho.com/2024/01/04/intelectuais-se-solidarizam-com-breno-altman-em-meio-a-perseguicao-judicial-por-criticas-a-israel/; https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/pt-chama-de-perseguido-politico-jornalista-que-relativizou-acoes-do-hamas/).

Foram posições fortes e extremadas. A de Altman, particularmente, porque apontou para a possibilidade de extinção de um Estado consolidado e que, goste-se ou não, é a única democracia no Levante. É uma posição forte, extremada e com perigosas possibilidades.

O argumento de Altman está baseado no fato de, segundo ele, Israel cometer genocídio contra o povo palestino.

O termo genocídio é utilizado de forma elástica por Altman. Se aceito, como ficaria o Brasil? E os Estados Unidos? E a Rússia? Os alguém imagina que os territórios desses países foram construídos sem sangue de muitos e variados povos? Qual povo constituiu um Estado, nos últimos quinhentos anos, sem violar direitos hoje considerados consagrados? As atuais gerações devem expiar pelos pecados dos seus antepassados? Se não é possível defender a destruição moral do Estado na mídia corporativa ou nas redes sociais, seria possível no ambiente acadêmico? E varrer qualquer forma do Estado do mapa, propondo uma nova forma de organização da sociedade? Seria uma fala legítima?

As sociedades primitivas viviam em “estado de natureza”, caracterizado pela ausência de regras que garantissem a ordem e estabelecessem limites às relações sociais. Thomas Hobbes apontou que o homem é um ser racional e que o estado de natureza não é benéfico para atingir seus objetivos; a melhor opção para tal é o estado social, estabelecido por meio de um contrato com mútua transferência de direitos. No entanto, o bom funcionamento deste acordo depende da existência de um poder visível que mantenha os homens dentro dos limites consentidos e que os obrigue, por temor ao castigo, a realizar seus compromissos. É daí que surge o Estado.

Há uma bala de prata, a regulação das redes sociais, que afasta a maldição de varrer um Estado específico ou de abafar qualquer manifestação que cause incômodo maior ao status quo, dizem os especialistas e espertos cassadores e caçadores da liberdade de expressão, um dos pilares dos regimes democráticos.

Para Locke, a intolerância à diversidade de opiniões, difícil de ser evitada, é apontada como a fonte de tensão e guerras. Por isso, o argumento da tolerância é condição necessária para a estabilidade política. A esse respeito, por sinal, cabe mencionar o ocorrido em 1798 nos Estados Unidos, quando a liberdade de expressão foi posta à prova pela lei de sedição, que tornou crime expressar “qualquer escrito falso, escandaloso e malicioso” contra governo, o Congresso ou o Presidente da República. Naquele mesmo ano, o ato foi declarado inconstitucional. James Madison argumentou que o tema já estava exposto na Primeira Emenda, motivo por que não cabia ao Congresso legislar sobre imprensa e opinião. Ele demonstrou que o mais amplo direito à livre expressão está na natureza de um governo republicano e, mesmo que uma minoria faça mau uso do direito, ele deve ser assegurado.

Conflitos fortes exigem que sejam expostos, de forma clara, quais são os elementos constitutivos do Estado, a saber, povo, território e soberania. Lord Acton, não por acaso inglês, primeiro país ocidental a frear a autoridade ilimitada dos monarcas, disse que “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Autores anteriores a Lord Acton, como Aristóteles e John Locke, defenderam a existência do poder político limitado, para que não se degenere em um regime corrupto ou autoritário.

Existiram tiranos aos montes que confirmaram a afirmação do nobre inglês que viveu entre meados do século XIX e o início do século XX. Infelizmente, parece que não aprendemos com o passado.

O Brasil ainda tem um longo e tortuoso caminho pela frente.