Do liberalismo econômico clássico aos neoliberais

28 de julho 2019 - 09h56
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A teoria econômica é complexa e, como toda a área de ciências humanas e sociais, carrega uma gama de autores com os mais variados perfis: liberais clássicos, liberais neoclássicos, marxistas, keynesianos, estruturalistas, monetaristas, etc.  

Duas correntes teóricas tão atacadas quanto desconhecidas são a liberal (clássica e neoclássica) e a marxista. A crítica quase sempre é genérica, típica de quem não tem leitura mínima sobre o assunto ou de quem o desconhece totalmente.

Há um monte de gente por aí escrevendo sobre história e teoria econômica sem nunca ter lido, a sério, um livro de teoria econômica. Por isso mesmo, do alto da ignorância, apontam, desonestamente, teóricos consagrados da área como superficiais.

No programa “Roda Viva”, da TV Cultura, Roberto de Oliveira Campos disse não conhecer o neoliberalismo, mas sabia existirem neoliberais. Segundo ele, o neoliberalismo é apenas o produto do liberalismo econômico neoclássico, que, por sua vez, é uma redefinição do liberalismo clássico. Logo não há uma escola neoliberal e sim uma escola liberal. 

Há anos demonizado por quem nunca o leu, o escocês Adam Smith foi o criador de uma obra monumental e dos alicerces do pensamento econômico e um dos principais pensadores do século XVIII. Professor inicialmente de Lógica e depois de Filosofia Moral, escreveu uma obra importante, Teoria dos Sentimentos Morais, que o alçou à condição de estrela de primeira grandeza no mundo intelectual. Ressalte-se que Filosofia Moral era uma disciplina de concepção extremamente abrangente naquele tempo, pois englobava Teologia Natural, a nascente Economia Política, Ética e Jurisprudência.

Na década de 1760 passou uma temporada na França, onde começou a trabalhar no esboço de um tratado de economia política, assunto de suas aulas na Escócia e discutido à exaustão com David Hume. A obra, A Riqueza das Nações, concebida como um libelo contra as políticas comerciais britânicas que, segundo ele, enfraqueciam as colônias, desviavam a energia da nação e afundavam em rivalidade os países da Europa, revolucionou o pensamento econômico.

 A Riqueza das Nações foi também pensada como uma espécie de contraponto às obras de François Quesnay, principal expoente da fisiocracia e outro monstro do pensamento econômico, a quem Smith dedicara o livro.

Quesnay, médico de Mme. Pompadour e doutor da corte de Luís XV, era o maior pensador econômico francês e responsável pela elaboração de um esquema de explicação para o funcionamento da economia denominado tableau éconimique, proposta que se opunha à ideia de que a riqueza de um país estava associada ao acúmulo de ouro e prata. Para o pensador francês, a riqueza econômica originava-se da produção e difundia-se pelo país.

As ideias de Quesnay, segundo Smith, beiravam à perfeição, mas traziam consigo um entrave para o correto entendimento acerca dos motivos pelos quais um país enriquece: a ideia de que apenas o trabalhador agrícola produz a verdadeira riqueza e que os trabalhadores da indústria e do comércio alteravam de forma estéril a sua forma.

Precursor dos princípios liberais econômicos, Quesnay falhou enormemente ao descrever o setor industrial como desempenhando apenas uma manipulação estéril da natureza.

Não considerar que o trabalho em qualquer setor poderia produzir riqueza foi o erro que lançou Quesnay à vala comum dos que dão contribuição para o desenvolvimento da ciência, mas que não adquirem o status de ícones do pensamento científico. Perceber o erro do mestre e corrigi-lo foi o diferencial de Smith, o ato que o alçou à condição de fundador de uma ciência, a Economia.  

A divisão do trabalho ocupa um lugar de destaque na doutrina liberal clássica. O pressuposto está centrado no princípio de que o egoísmo é inato ao homem e na ideia de que os homens devem ser livres para dar asas às suas pulsões egoístas.

A pressuposição de que os homens são egoístas foi levantada por Thomas Hobbes. Para ele, se não houvessem mecanismos coercitivos, os homens se lançariam uns sobre os outros num estado guerra que a todos exterminaria. Por isso, a vida do homem seria “solitária, pobre, torpe, bestial e curta”. Havia uma forma de a isso escapar: a instauração de um poder absoluto ao qual todo homem deveria obediência em troca de proteção contra a ameaça representada por outros homens.

Adam Smith resolveu com maestria o enigma hobbesiano. Sem negar a existência da competição e da rivalidade geradas pelo egoísmo inato e irrestrito dos homens, Smith advogava que as relações de competição eram benéficas para os indivíduos e para a sociedade, pois os indivíduos esforçam-se “continuamente para encontrar o emprego mais vantajoso para o capital, seja ele qual for (...)”. Todo indivíduo que não tiver capital, buscará uma ocupação remunerada que lhe traga o maior retorno monetário possível. Se capitalistas e trabalhadores ficassem entregues às leis que regulam o funcionamento do mercado, o interesse de cada um levá-los-ia a empregar seu capital ou seu trabalho onde fosse mais produtivo e mais rendoso. Por isso, Adam Smith era contrário a qualquer forma de intervenção que estabelecesse o que deveria ser produzido.

Os produtores das mais diversas e variadas mercadorias devem, ensinava Smith, concorrer no mercado e disputar a preferência e o dinheiro dos consumidores. Aquele que oferecer o melhor produto pelo preço mais baixo atrairá os consumidores. “Não é da benevolência”, afirmou com o criador da Ciência Econômica, “do açougueiro, do cervejeiro, do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua preocupação com o seu próprio interesse”. O interesse próprio, fruto do egoísmo, levará cada capitalista a aprimorar a qualidade de suas mercadorias. Vender o melhor pelo menor preço possível significará o aumento das vendas e, consequentemente, o aumento dos lucros.

Apesar de ser um grande livro, A Riqueza das Nações não é propriamente uma obra original, visto que toma emprestada uma visão de mundo de uma longa lista de pensadores: Petty, Locke, Turgot, Quesnay, Hume, etc. Mas onde todos estes lançaram impressões esparsas sobre temáticas econômicas, Smith refletiu amplamente, lançando luzes sobre todo o cenário econômico – descrevendo da especialização do trabalho numa fábrica de alfinetes aos últimos distúrbios nas colônias americanas, inclusive sobre o papel que as treze colônias iriam desempenhar (uma nação formidável “que, sem dúvida, prometia se transformar na maior e mais formidável do mundo”).

O livro é a um só tempo denso e revolucionário. Denso porque escrito para expor uma doutrina eficiente para dirigir um império – e não simplesmente para fomentar discussões acadêmicas. Revolucionário porque em pleno processo inicial de consolidação e expansão do capitalismo, não se mostra como um apologista do burguês empreendedor mas como um admirador do seu trabalho, embora desconfiado de seus motivos, sendo a sua preocupação maior promover a riqueza pela nação inteira; só possível com a produção das mercadorias que todas as pessoas da sociedade consomem. De certa forma a necessidade de produzir mercadorias em grande número e de boa qualidade inibirá as forças centrífugas da sociedade; é do egoísmo que nascerá a coesão social, pois é do interesse individual que são atendidos os interesses do grupo, sem necessidade de qualquer autoridade política.

Para o pensador escocês haveria uma mão invisível responsável por orientar as paixões e as vontades individuais na direção de algo benéfico “para o interesse da sociedade inteira”. É dessa proposição que ele formula os pressupostos das leis do mercado, parte integrante de leis maiores que causam a prosperidade ou a queda da sociedade. São elas que nos apontam que a influência de algum costume numa dada estrutura social traz resultados previsíveis. O egoísmo individual em um ambiente tomado por indivíduos motivados leva à competição – o que significa a produção das mercadorias que a sociedade quer, nas quantidades que exige e nos preços que está apta a pagar.

O interesse e o egoísmo dos indivíduos agem como um poder orientador para dirigir os homens a qualquer trabalho que a sociedade esteja disposta a recompensar e a competição entre os indivíduos egoístas agem como um fator regulador, pois amainaria os efeitos nocivos, para a sociedade, do egoísmo individual. Como cada indivíduo quer tirar vantagem de seu companheiro de cobiça, aquele que perder o interesse próprio logo descobrirá que outros competidores ocuparam o lugar dele. O que a primeira vista poderia significar o caos renderia um quadro de harmonia social. Desobedecer a esses imperativos significa, conforme Smith, a ruína econômica.

No período em que Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações, o mundo social e econômico funcionava dessa forma, porque o ambiente econômico era de grande competição, com vários pequenos produtores se enfrentando num mercado extremamente atomizado, um mundo bem diferente do de hoje. Mas ainda assim, as ideias de Smith, escritas para explicar o mundo do século XVIII, ainda podem ser aplicadas no mundo atual.     

Como dissemos, citando Roberto Campos, o neoliberalismo é apenas um produto do liberalismo econômico neoclássico, uma redefinição do liberalismo clássico

A origem do termo neoliberalismo deve ser remetida à Escola Austríaca, mais precisamente aos economistas Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, que formularam o pensamento econômico a partir da Lei de Say e da teoria marginalista, contestadas pelo britânico John Keynes, contemporâneo de ambos.

O pensamento de Lorde Acton, de Adam Smith e de Jean B. Say foram fundamentais na construção e no desenvolvimento do pensamento de Hayek, pois enfatizava a importância central da moralidade no desenvolvimento de uma civilização avançada. Para Hayek, uma economia próspera e o desenvolvimento da lei como um processo evolucionário requerem uma sólida ordem moral. Sem isso não haverá uma sociedade saudável, próspera e livre.

A economia mundial experimentou praticamente duas décadas de crescimento contínuo. O lastro de tal crescimento está nos princípios liberais esboçados por Smith, Ricardo, Say, os neoclássicos (Cournot, Marshall, etc), Hayek, Mises, Friedman, etc. O modelo, é verdade, tem suas limitações, mas garantiu crescimento econômico, superou uma sucessão de crises e legou à parte da periferia do capitalismo um lugar de destaque no cenário mundial.